A Primeira Profecia se apoia no body horror para fazer melhor terror de franquias em anos
Diretora estreante Arkasha Stevenson injeta nova vida na franquia com ajuda da atuação de Nell Tiger Free
Crítica
Não faltam exemplos de como fazer continuações, prequels e derivados de grandes franquias de terror do jeito errado. Sejam as tentativas honradas mas irregulares de atualizar ícones para a atualidade (como nos últimos Halloween), ou os fracassos totais de compreensão dos temas dessas histórias (O Exorcista: O Devoto), tudo fica ainda pior quando colocamos estes ao lado do perturbador A Primeira Profecia.
Concebido como Rogue One foi para Star Wars, o filme se passa antes do clássico A Profecia, dirigido por Richard Donner em 1976, mas caminha com seus próprios pés numa história que trata do abandono da fé, pincelada com algumas das imagens mais bizarras, assustadoras e medonhas do cinema de terror hollywoodiano em anos recentes. Tanto é que a produção lutou três vezes contra uma classificação indicativa para 18 anos, o que restringiria suas sessões em cartaz. O selo final foi o de 16 anos, mas há coisas para as quais ninguém, de idade alguma, estará pronto.
Isso, em teoria, inclui a diretora estreante Arkasha Stevenson e a atriz principal, Nell Tiger Free protagonizando pela primeira vez uma produção deste porte. Na falta de experiência, as duas parecem ter encarado o filme como uma oportunidade única. O que está em tela não se assemelha em quase nada com produções recentes que abusam dos nomes mais clássicos do terror ocidental. Há criatividade nas composições, entrega total na atuação e um sentimento de cuidado em fazer algo que agregue ao gênero, e não seja apenas uma coleção de referências. A Profecia nunca esteve no mesmo patamar das sagas de Michael Myers ou da família McNeil, mas graças a este prequel magnético, bizarro e surpreendentemente belo, está mais viva do que ambas.
Nada mais apropriado para algo tão centrado no ato do nascimento, e onde o parto é fonte de beleza medonha e ansiedade constante. A grávida em questão é, aparentemente, a adolescente Carlita (mais uma novata: Nicole Sorace), uma menina reclusa e violenta no orfanato gerenciado pela Irmã Silva (nossa Sônia Braga, muito elogiada pelo elenco) onde Margaret (Tiger Free) serve em preparação para fazer seus votos de freira. O bebê, claro, é supostamente o Anticristo.
Fãs do filme original reconhecerão imediatamente o caminho das coisas quando o Padre Brennan (Ralph Ineson) se aproxima de Margaret com os rumores de uma conspiração para trazer o filho de Satanás à terra. Por outro lado, Stevenson — que também escreveu o roteiro junto com Tim Smith e Keith Thomas, com base numa história de Ben Jacoby que, vez por outra, se apoia demais em conveniências forçadas — está mais interessada em contar esse capítulo específico da melhor maneira possível, construindo Margaret como uma personagem própria, e não uma peça no quebra-cabeças no plano do estúdio.
A jovem está passando por uma crise de fé. Ela quer fazer os votos, mas não tem certeza se ouviu a voz de Deus uma vez sequer. Por mais que o Cardinal Lawrence (Bill Nighy) insista em seu destino, basta olhar para os olhos sempre frenéticos e vulneráveis de Tiger Free para identificarmos seus demônios interiores, que a conectam com Carlita. Uma reconhece na outra uma escuridão parecida: quando tinha a idade da garota, Margaret também sofreu com visões sombrias, e ao trazer esses pesadelos à vida, A Primeira Profecia aterroriza tanto a protagonista quanto o público.
O campo para essa realização é Roma, no começo dos anos 1970. Protestos estudantis refletem o secularismo da década. Toda a sociedade está se afastando da igreja. As consequências espirituais disso são o elemento menos destrinchado do filme, mas o cenário pincelado é tátil. Das roupas aos carros, somos transportados para a época, e especialmente para a ambientação sugerida.
Com assistência da fotografia granulada e de alto contraste de Aaron Morton, Stevenson gera uma série de composições nebulosas, onde os elementos, ou a câmera, podem se mover e assustar. Em mais de um momento, ela parece conseguir enganar nossos olhos; seus quadros direcionam nossa atenção para um ponto, e a surpresa — e por tabela, o terror — vêm de outro. A diretora nos contou em entrevista que encarou seu primeiro longa com a mesma abordagem de seus curtas e episódios televisivos, e a julgar pelo resultado isso inclui preencher cada decisão técnica com o máximo de criatividade possível.
A Primeira Profecia imagina cena após cena com algo (tipicamente assustador) para chamar nossa atenção. Além de incluir duas das mais graves vozes do entretenimento moderno, o prólogo, uma conversa tensa entre Brannon e outro padre, interpretado por Charles Dance, brinca com expectativas da audiência para manter-nos de olhos abertos, até revelar a conclusão da sequência da maneira mais sangrenta e inesperada.
Mas é com o corpo feminino que Stevenson mais acerta. Contando com uma atriz de grande fisicalidade em Tiger Free, uma mulher de feições redondas mas caráter esquelético, A Primeira Profecia se propõe ao body horror, enfatizando a tensão inerente ao encontro de ferramentas metálicas e frias dos médicos e a carne quente de quem está prestes a entrar em trabalho de parto, e temperando essa dinâmica com vislumbres profanos do sobrenatural.
Justamente por acertar tanto no preparo, Stevenson sabe exatamente a hora de levantar o véu. A Primeira Profecia não deixa seus acontecimentos na ambiguidade, uma decisão que num filme mais fraco poderia representar a busca por choques instantâneos e baratos. Graças a Stevenson e Tiger Free, porém, o filme está envolvo na atmosfera densa e imponente do terror, e quando elas decidem partir para o impacto, nos sentimos como testemunhas do cumprimento de seus oráculos.