A Sociedade da Neve reflete a grandiosidade de uma história incrível, mas não de seus sobreviventes
Aposta da Espanha para o Oscar, filme de J.A. Bayona está disponível na Netflix
Crítica
Léguas à frente da versão americanizada, o datado Vivos, e aquém do poder cru do documentário Venho de um Avião que Caiu nas Montanhas, no qual vemos os sobreviventes falando, A Sociedade da Neve, aposta espanhola para o Oscar 2024 que estreou no começo deste ano na Netflix, luta para capturar a visceralidade do tipo de história real tão impressionante e conhecida que talvez, seja demais para um filme.
Por meio da escala impressionante de sua produção e de um elenco numeroso, o diretor J.A. Bayona recria a história do time de rúgbi uruguaio Old Christians, que ficou preso nos Andes por 72 dias depois de um desastroso acidente aéreo, construindo o que deve virar a adaptação mais conhecida de uma jornada de sobrevivência cujos méritos dramáticos são aparentes e inescapáveis. Das 45 pessoas naquele avião, só 16 voltaram para casa. Estes foram submetidos a um teste de resistência, emocional e física, de parâmetros incomparáveis.
Para colocá-las lá, A Sociedade da Neve começa com uma curta porém cansativa introdução na qual os personagens trocam palavras sobre como essa pode ser sua última viagem juntos, abrindo mapas da cordilheira múltiplas vezes e ouvindo os perigos de voar naquela região durante o inverno. São poucos minutos, mas a forma como eles tratam os acontecimentos futuros como algo a ser telegrafado é tanto desnecessária quanto frustrante. Você não precisa ter assistido aos outros filmes para estar familiarizado com os Old Christians; como eles precisaram trabalhar juntos, improvisar e eventualmente comer a carne dos falecidos para permanecer vivos.
Veterano de filmes de desastre como O Impossível e filmes desastrosos como Jurassic World: Reino Ameaçado, Bayona transforma a sequência da queda do avião num pesadelo real. Como faz numa cena de avalanche posterior, o diretor se prova mais do que capaz de construir tensão e tirar dela a energia para comunicar a intensidade e o horror da situação, aliado sempre do espetacular design sonoro e de recriações fidedignas do veículo, vemos o rasgar da fuselagem e o voar de corpos não afivelados enquanto o vento se torna a voz de um destino cruel.
É o momento mais assustador para os personagens, e também o auge do filme. Se cenas de mais ação e dinamismo são sua casa, Bayona sofre para navegar os dias e semanas seguintes, onde a batalha pela vida é constante e lenta. Sua direção se torna repetitiva, e a incapacidade do roteiro para dar vozes individuais ao grupo nos deixa sempre a um passo de distância para entendermos o que acontecendo em níveis emocionais e psicológicos.
Parece um esforço do filme para trazer à luz o coletivismo necessário para aguentar circunstâncias tão extremas. Se há um protagonista, seria o narrador Numa (Enzo Vogrincic), e há alguns nomes que serão lembrados, em especial o bravo Nando (Agustín Pardella), cuja coragem é grande o suficiente para apequenar as montanhas geladas. Essas personalidades, porém, são pouco exploradas. Quando um dos garotos argumenta a inutilidade da fé no sobrenatural, por exemplo, o discurso soa totalmente vazio.
A Sociedade da Neve está interessada em questionar o uso da palavra "milagre" para definir os dois meses desses jovens no frio — afinal, houve mais mortos do que vivos — mas essa resistência ao divino nunca é aprofundada. Sim, a maior parte dos atletas era católico (algo que o simbolismo frequente da cruz não vai te deixar esquecer), mas para desafiar a relação deles com Deus, é preciso primeiro nos dar um vislumbre de como era, ou ao menos de quem eles eram. A decisão de não ter um personagem principal reforça o uso de "sociedade" no título, mas restringe a capacidade do longa de entrar na mente ou no coração deles para além do drama inerente à premissa.
A Sociedade da Neve sempre volta aos closes de rostos desesperados, e com o auxílio da fotografia iluminada de Pedro Luque, enquadra tomadas abertas de beleza assombrosa, onde o contraste o espetáculo da natureza com a dureza de sua indiferença fica claro. Raros são os planos médios, que relacionam os rostos à paisagem, e nos dizem quem são as pessoas neste ambiente. Bayona então apela para o sentimentalismo, particularmente na narração (de onde tira uma reviravolta barata), mas não vence o afastamento, um erro grave diante da longa duração.
Ainda assim, é difícil não ser levado às lágrimas quando a conclusão, e o resgate, enfim chega. Particularmente devido ao excelente trabalho visual dos últimos 30 minutos, quando Nando e Roberto (Matías Recalt) partem numa jornada em busca do limite entre os Andes e a civilização, Bayona mais uma vez se mostra capaz de refletir a grandiosidade de feitos improváveis.
Quando a euforia desse retorno é contraposta com a imagem dos esqueletos deixados para trás, A Sociedade da Neve encontra uma forma muito mais interessante de representar os dois lados desses fatos mais do que qualquer debate raso sobre fé. Ali, na visão de um sobrevivente malnutrido e sujo abraçado por estranhos, enfim sentimos a dualidade da perda devastadora de 29 vidas e do milagre deslumbrante da permanência de 16 outras.