Ervas Secas faz fantástico estudo de personagens com humor desconfortável

Ervas Secas faz fantástico estudo de personagens com humor desconfortável

Novo filme do diretor turco Nuri Bilge Ceylan foi um dos melhores do Festival de Cannes 2023

Guilherme Jacobs
21 de março de 2024 - 8 min leitura
Crítica

Num dos últimos minutos de Ervas Secas — o espetacular novo drama de Nuri Bilge Ceylan, diretor turco vencedor da Palma da Ouro do Festival de Cannes por Sono do Inverno — Samet (Deniz Celiloglu) anda até o topo de uma colina coberta pelas titulares gramas secas enquanto medita sobre o fim da temporada de neve que cobria aquela terra, e todo filme até então. Chegando lá, Samet observa seus amigos Kenan (Musab Ekici) e Nuray (Merve Dizdar) como formiguinhas. Seu olhar paira sobre a região e, com queixo levantado, ele adota a postura de vencedor. O momento é uma forma poética de tornar literal a verdade vista ao longo das três horas precedendo essa escalada — Samet se acha profundamente superior a tudo e todos ali. Posicionado como conquistador, ele se mostra satisfeito com essa certeza. Ele é melhor que aquilo.

Com longas tomadas e planos abertos, diálogos afiados e humor desconfortável, Ervas Secas é capaz de dizer tanto sobre nossa sociedade egoísta quanto sobre a situação política da Turquia, jamais deixando de ser primariamente um estudo de caráter. Este filme é sobre Samet, um professor de ensino fundamental cumprindo seu quarto ano numa escola do interior do país, onde o inverno brutal deixa a paisagem branca, tediosa e impiedosa. Quando o conhecemos, ele acaba de voltar de sua cidade natal, onde passou as festas de fim de ano, para iniciar um novo semestre com seus alunos, alguns dos quais ele tem intimidade o suficiente para conversar casualmente, recebendo-os no armário de equipamentos de educação física onde passa os intervalos entre aulas.

A mais achegada é a pequena Sevim (Ece Bagci), e um dia, após abusar um pouco demais de sua posição de poder com a aluna, Samet é denunciado junto com seu colega Kenan por comportamento inadequado na escola. Mais tarde, descobrimos que o problema foi sua abordagem dentro da classe. Isso pode até ser a descrição oficial, mas já vimos o suficiente para termos certeza que Samet é mais perigoso fora daquelas quatro paredes. Ervas Secas jamais o mostra assediando sexualmente ou usando violência física com as crianças, mas Ceylan dá o mínimo de pistas necessárias para ambas possibilidades cruzarem nossas mentes. Uma coisa, porém, fica clara. Independente de como é expressado, Samet ama poder.

Através da encenação cuidadosa e diálogos reveladores, Ervas Secas deixa perceptível a natureza manipuladora de seu protagonista. A simples maneira como o diretor organiza seus personagens em cena e decide quais rostos estarão visíveis (e quando), quem está olhando pra quem, diz tudo sobre as dinâmicas dos relacionamentos ali apresentados. Essas composições têm espaço para piadas, para brigas, para toda a experiência humana. Samet, por exemplo, parece genuinamente gostar de seu colega de casa e profissão Kenan, mas não perde a oportunidade de diminuí-lo. Quando Kenan e Nuray, uma mulher a quem Samet foi apresentado mas não teve interesse romântico, começam a revelar uma química, Samet não resiste: ele pode não ter se apaixonado por ela no primeiro encontro, mas não deixará seu amigo chegar lá antes.

Nuray também é professora. Ela chegou recentemente para voltar a morar com seus pais após perder a perna numa explosão suicida em outra escola. Por causa disso, ela tem direito de pedir transferência a qualquer momento, para qualquer lugar, e é inconcebível para Samet que ela não queira logo partir para Istambul e aproveitar a correria da cidade grande. Nuray, descobrimos, está totalmente oposta às opiniões de Samet. Não é uma simples direita contra esquerda. É algo mais elemental. Nuray é capaz de colocar outra pessoa em primeiro lugar, de pensar além de si mesma e, mesmo com suas muitas necessidades emocionais, vê valor no sacrifício pelo próximo. Samet, por sua vez, só liga para si mesmo.

Vemos o desenrolar dessas interações, às vezes rindo de seu desconforto e às vezes segurando a respiração diante deste exato elemento, em planos espaçosos. A fotografia de Cevahir Sahin e Kürsat Üresin oferece amplitude suficiente para as grandes atuações do elenco. Com feições fortes e olhar expressivo, Celiloglu preenche a telona com sua personalidade intensa e torna Samet profundamente interessante sem nunca deixar-nos esquecer quem ele é. É menos um exercício de simpatizar com uma pessoa má, e mais um esforço de reconhecer o fascínio inerente do ato de testemunhar a vida de uma pessoa.

Com o fenomenal trabalho do ator e as palavras do roteiro de Nuri Bilge Ceylan, Ebru Ceylan e Akin Aksu, não há como não olhar para Samet assim. Dizdar, por outro lado, precisa equilibrar a maior carga emocional dos três. A força ativista e determinação social de Nuray precisam transparecer com clareza e permanecerem lá até quando ela precisa mostrar seu lado vulnerável. Seus olhos marcantes produzem um dos mais impactantes choros possíveis, e através deles temos uma janela para sua alma. Ekici recebe o papel menos chamativo dos três, mas assim como a prodígio Bagci, faz bom uso de cada minuto em cena. Ambos transformam seus personagens, Kenan e Sevim respectivamente, em exemplos das consequência de uma visão destrutiva como a de Samet, mas felizmente jamais reduzem seus papéis ao vitimismo.

Talvez o patamar desse desenvolvimento explique porque o final, mesmo com a emblemática caminhada de Samet, deixe a desejar. Requerer de Ervas Secas uma espécie de ética, uma atitude de julgar e punir seu protagonista, seria um equívoco. A direção de Ceylan, contudo, não oferece um ar de conclusivo. Ele prefere uma espécie de fechamento abstrato que não condiz personagens tão sólidos e bem definidos. Após ganharem tanta vida em suas conversas e através das interpretações de seus atores, Samet, Kenan e Nuray são diminuídos pela forma como o diretor os deixa de lado para, pela primeira vez no filme, parecer mais interessado nos temas e mensagens.

A palavra tridimensional vem à mente. Seja para descrever essas atuações, os personagens por elas definidos e o texto que dá corpo à obra. Ervas Secas é o retrato de uma sociedade repleta de detalhes e idiossincrasias; um globo de (muita) neve que observamos de perto por tempo o suficiente para encontrar cada faceta, considerá-la e interpretá-la. A grande beleza melancólica do filme, porém, se revela quando damos um passo para trás e, como Samet do topo da colina, vemos o todo.

Crítica publicada no dia 20 de maio de 2023 no Festival de Cannes. Ervas Secas estreia no Brasil em 14 de março de 2024.

Nota da Crítica
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Guilherme Jacobs
ONDE ASSISTIR

Ervas Secas

Drama
3h 17min | 2023
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