All We Imagine as Light quebra paradigmas da Índia com sensibilidade

All We Imagine as Light quebra paradigmas da Índia com sensibilidade

O filme é o primeiro título indiano em competição pela Palma de Ouro no Festival de Cannes em 30 anos

Guilherme Jacobs
24 de maio de 2024 - 6 min leitura
Crítica

Primeiro título indiano em competição pela Palma de Ouro no Festival de Cannes em 30 anos, All We Imagine as Light é, antes de mais nada, um ótimo filme sobre viver na cidade, e um ótimo filme sobre chuva na cidade. Na primeira hora, a diretora Payal Kapadia encena a história de três enfermeiras durante dias chuvosos na populosa e movimentada Mumbai. Pode parecer um detalhe, mas essa decisão pavimenta o caminho para que a cineasta quebre, com sensibilidade enorme com suas personagens, os paradigmas nos quais elas se encontram.

Em primeiro lugar, a ambientação de uma metrópole, o tipo de lugar que fica dez vezes mais caótico, claustrofóbico e abafado quando há chuva, traz com si a sensação de pressa. Ninguém quer ficar parado na chuva. Todos têm algum lugar pra ir. Além de inundar All We Imagine as Light com textura, cheiro e temperatura, Kapadia faz dessa metade introdutória um exercício de frenesi que tira de força as enfermeiras Prabha (Kani Kusruti) e Anu (Divya Prabha) a aprenderem como roubar minutos preciosos no meio do corre-corre se quiserem entrar em sintonia com seus sentimentos, e se entenderem como mulheres. Estes vêm nas madrugadas, longe dos olhares de estranhos, e às escuras.

Lidando diretamente com questões religiosas, matrimoniais, culturais e sociais da Índia, onde seu primeiro filme, um documentário, nunca foi lançado. Ali, ela retratou protestos estudantis que o governo não tinha interesse em destacar. Íntimo e quieto, All We Imagine as Light não parece, à primeira vista, tão explosivo. Isso muda quando conhecemos Prabha e Anu.

A primeira é mais velha, regrada e fiel tanto à religião Hindu quanto aos costumes antigos do país, que vão de vestimentas até a prática de casamentos arranjados. Foi assim que ela conheceu seu marido, a quem não vê há anos. Ele foi trabalhar numa fábrica na Alemanha, nunca liga pra ela, e nunca atende suas ligações. Seu último contato foi enviar uma panela de arroz moderna pelo correio. É o máximo que ela recebe de uma demonstração de amor. Na superfície, Prabha segue os ritmos da vida de forma rigorosa, mas a atuação de Kusruti deixa visível, em especial no olhar longânimo da mulher, seu desejo por companheirismo e alegria, e a vontade de viver de forma mais leve. Ela não consegue esconder o sorriso quando um novo cirurgião no hospital onde trabalha flerta com ela.

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Prabha divide um pequeno apartamento em Mumbai com Anu, mas sua colega de trabalho não tem tanta timidez na hora de quebrar as regras. Ela se veste com trajes tradicionais e tem o Bindi — o ponto na testa — mas vive fugindo para se encontrar com o namorado muçulmano Shiaz (Hridhu Haroon), a quem seus pais, e provavelmente Prabha, rejeitariam. A princípio, Kapadia parece estar caminhando num formato conhecido de narrativa, com a veterana e a novata aprendendo e ensinando uma à outra, apesar de suas diferenças, mas então ela decide complicar as coisas de maneira que enriquece All We Imagine as Light.

Isso vem através de uma terceira enfermeira, Parvaty (Chhaya Kadam). Essa coadjuvante vive, há décadas, no casebre para onde seu falecido esposo a levou, mas ela nunca obteve nenhuma documentação oficial que lhe desse posse do lugar. Agora, uma construtora está prestes a despejá-la. Prabha, sua melhor amiga no trabalho, eventualmente a convence a buscar ajuda de um advogado, e as duas até comparecem a movimentos trabalhistas majoritariamente ocupados por praticantes do hinduísmo que protestam o descaso da Mumbai moderna com eles, os habitantes pobres que um dia ergueram a cidade. Eventualmente, contudo, as opções se esgotam e Parvaty se vê sem saída a não ser voltar para sua vila.

Então, All We Imagine as Light troca de marcha e leva as três para longe da cidade grande. É uma decisão arriscada, dado o sucesso de Kapadia em construir o clima urbano, e há uma perda perceptível de energia durante a chegada do trio na costa. Tematicamente, porém, a troca de paisagens dá a realizadora a oportunidade de deixar suas personagens respirarem. Longe dos arranha-céus opressores, da chuva incessante, e da correria do cotidiano, Prabha e Anu conseguem, enfim, pensar e sentir.

É um momento que força as duas a lidarem com a tensão de seus relacionamentos, até chegarem num entendimento que, de maneira refrescante e surpreendente, valida mais a Anu. Prabha, percebemos, quer viver como sua colega, que é sem dúvidas a menos desenvolvida das duas mulheres principais no roteiro, mas cuja visão de mundo oferece a liberdade pela qual ambas anseiam. Primeiro com uma cena de sexo de enorme delicadeza entre Anu e seu namorado, e depois com uma conclusão silenciosamente bela, Kapadia encerra All We Imagine as Light validando a imaginação de suas protagonistas. Elas estão mais do que certas em imaginar um futuro melhor para as mulheres indianas.

Nota da Crítica
EstrelasEstrelasEstrelasEstrelasEstrelas
Guilherme Jacobs

All We Imagine as Light

Drama
1h 50min | 2024
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