Ficção Americana usa excelente elenco para sátira, mas é melhor no drama genuíno

Ficção Americana usa excelente elenco para sátira, mas é melhor no drama genuíno

Indicado a 5 Oscars, filme de estreia de Cord Jefferson conta com Jeffrey Wright e Sterling K. Brown

Guilherme Jacobs
27 de fevereiro de 2024 - 7 min leitura
Crítica

Thellonious Ellison, mais conhecido como Monk, está frustrado com a insistência do entretenimento norte-americano nas mesmas histórias sobre negros. Pais ausentes, vícios em drogas, tiroteios com a polícia e assim vai. Esquecendo que para muitas pessoas essa é a única realidade e frustrado quando outra obra assim ganha prêmios, Monk vê isso como uma redução da experiência afro-americana aos mesmos clichês. Em paralelo, claro, Ficção Americana não é nada clichê.

O filme de estreia de Cord Jefferson, uma comédia ágil e perspicaz que brilha especialmente nos momentos mais íntimos entre famílias e amigos, é rico em personagens que desafiam estereótipos e possuem vozes próprias. Enquanto Monk, vivido pelo tipicamente coadjuvante Jeffrey Wright (uma escalação que por si só já é um desafio às convenções) escreve um "livro de preto" numa noitada bêbado e vê esse romance propositalmente ruim encontrar sucesso inesperado, Ficção Americana comenta sobre como Hollywood trata a ideia da representação negra e, no processo, se torna o melhor argumento em favor de sua tese.

Adaptando "Erasure", de Percival Everett, Jefferson pinta esse cenário com tons lúdicos e sarcásticos, mas a sátira, por mais válida e astuta que seja, não é a melhor qualidade do filme. Ficção Americana acerta nos relacionamentos que Monk precisa criar e redefinir ao voltar para casa e reencontrar seus irmãos Lisa (Tracee Ellis Ross) e Cliff (Sterling K. Brown) para entender como melhor cuidar da mãe Agnes (Leslie Uggams), cada vez mais senil. De volta ao litoral de Massachusetts, o escritor também começa uma paquera com a vizinha Coraline (Erika Alexander). A verdadeira história de amor no filme pertence a Lorraine (Myra Lucretia Taylor), uma cozinheira que depois de tanto tempo trabalhando na casa dos Elisons já é tratada como família, e a paixão da vida de Manyard (Raymond Anthony).

Como o parágrafo acima sugere, Jefferson parece já saber que não há nada melhor para um diretor de primeira viagem do que um elenco com bons atores em cada papel, não importa o quão pequeno ele seja (espere para ver a participação de Keith David no filme). Enquanto Monk vê desesperado o sucesso do livro escrito com o pseudônimo Stagg R. Leigh para criticar os tipos de histórias negras valorizadas por uma indústria ainda muito branca, ele e sua família passam pelo tipo de experiência humana frequentemente deixada de lado pelo mesmo mercado. Nas mãos de ótimos intérpretes, cada personagem se torna apaixonante, intrigante e curioso.

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Há também uma excelente harmonia entre os atores. O sempre carismático Sterling K. Brown, por exemplo, se apoia nos seus trejeitos e gestos (em particular seu icônico olhar arregalado) para dar vida ao papel mais intenso da trama, sempre exalando humor, raiva, medo e tristeza. Enquanto ele e Ellis Ross, um poço cômico de personalidade, vão cada vez mais para cima, Wright é sempre mais contido e interior. A dinâmica não só diz muito sobre como os três irmãos se relacionam, como também adiciona musicalidade ao texto engraçado, afiado e veloz de Jefferson, excelente particularmente nos diálogos.

Na verdade, Jefferson acerta tanto o ritmo do núcleo genuíno de Ficção Americana, que os componentes mais irônicos da obra acabam deixando a desejar. Ainda há bastante comédia no tratar da indústria artística e seu apoio mercenário da diversidade, mas se tudo envolvendo os Elisons se beneficia de um drama interpessoal que surge naturalmente das atuações, aqui é o onde os artifícios de Jefferson ficam mais visíveis e menos interessantes.

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Claro, ainda é divertido ver Monk frustrado quando o livro, batizado sem cerimônia alguma de Fuck, se torna um best-seller, é adaptado para as telonas e ganha prêmios. Passadas as risadas, porém, Jefferson não constrói uma base tão sólida, por exemplo, nas dinâmicas entre Monk e Sintara Golden (Issa Rae), uma autora que na visão dele escreve, de maneira série, livros tão simplórios quanto sua mais nova obra. Há uma tensão nisso. Conflito. O filme, contudo, não os aproveita.

Ficção Americana claramente defende uma gama maior de narrativas negras, mas em momento algum somos levados a acreditar que Monk está 100% certo em seu descarte do gueto, das ruas e da violência. Essa é, afinal, a vida de muitos negros. Com exceção da única e excelente cena no qual ele e Sintara interagem, um vai-e-vem maravilhoso ente Wright e Rae, Jefferson não explora as contradições fascinantes levantadas por sua obra e seu protagonista, mantendo as (boas) piadas apenas na superfície. O humor nunca corta fundo demais.

Por isso, a conclusão metalinguística, uma que admite a dificuldade de finalizar o próprio filme, por mais curiosa e excêntrica que seja, ainda decepciona. Ela é embasada nos dilemas profissionais de Monk e em questões não resolvidas levantadas por Jefferson, e portanto falha na hora de oferecer resolução (ou até se apoiar na falta dela). Mas, então, voltamos para Wright e Brown, e para o elenco que colore, expande e se encontra na escrita de Jefferson. Com eles, Ficção Americana encontra o equilíbrio entre acidez humorística e coração genuíno que o próprio Monk parece incapaz, ou indisposto, a perceber na ficção afro-americano.

Crítica publicada originalmente em 7 de fevereiro. Indicado a 5 Oscars, Ficção Americana (American Fiction) está disponível no Brasil pelo Prime Video.

Nota da Crítica
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Guilherme Jacobs
ONDE ASSISTIR

Ficção Americana

Comédia
Drama
1h 57min | 2023
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