Anatomia de Uma Queda tem Sandra Hüller numa das melhores atuações do ano - Crítica do Chippu

Anatomia de Uma Queda tem Sandra Hüller numa das melhores atuações do ano - Crítica do Chippu

Anatomia de Uma Queda faz paralelos dentro de paralelos para confundir seu espectador sem nunca deixar de apresentar sua história com clareza

Guilherme Jacobs
25 de março de 2024 - 6 min leitura
Crítica

“Estamos discutindo justiça e literatura aqui,” diz o advogado de Sandra (Sandra Hüller) num momento climático do julgamento da mulher em Anatomia de uma Queda. A fala serve como uma pitada sutil mas muito presente de metalinguagem, vindo, claro, quando o excelente longa-metragem de Justine Triet discute essas mesmas coisas num exercício de traçar linhas entre realidade e ficção apenas para burlá-las. Ela é mencionada por Vincent (Swann Arlaud) quando os conteúdos de um dos livros de Sandra, autora cujo próprio trabalho mistura a verdade com o imaginário, são analisados como possível evidência de um crime. Teria ela imitado sua personagem e matado seu marido?

Samuel (Samuel Theis) morreu após cair do terceiro andar de seu chalé nas montanhas da França, manchando o solo embranquecido pela neve com o vermelho de seu sangue após A) Ter sido empurrado, B) Cometer suicídio ou C) Ter tropeçado acidentalmente. A polícia está certa de que a primeira teoria é a correta, e identificou Sandra como a provável culpada.

A debilidade de Daniel serve como uma conveniente metáfora para um filme sobre nossa perspectiva limitada. O que acontece quando, mesmo com toda a tecnologia moderna, toda a elaboração cautelosa de uma narrativa e reprodução de nossas vidas através de gravações, a verdade continua sendo um conceito hipotético? Quando dois resultados são igualmente concebíveis, como procedemos?

Atravessando o limite da certeza para encontrar tensão e intriga no campo da especulação e possibilidades, Anatomia de Uma Queda faz paralelos dentro de paralelos para confundir seu espectador sem nunca deixar de apresentar sua história com clareza. A começar pela obra da fictícia escritora, passando pelo julgamento da mesma e pela existência do filme dramatizando tudo isso, Triet nos leva mais e mais afundo no seu jogo de espelho. Ficção, conjectura e autenticidade se misturam em várias camadas, a começar por seus atores. Sandra no papel de Sandra, Samuel no de Samuel.

Anatomia de Uma Queda passa seu primeiro ato preparando o cenário para o que será um intenso e eletrizante drama de tribunal, cuidadosamente repetindo os acontecimentos daquele dia fatal com recriações, memórias e diálogos entre, particularmente, Sandra e seu filho, Daniel (Milo Machado Graner), que quase perdeu a visão num acidente há quatro anos. Ao fim da hora introdutória, marcada em especial pelas atuações de Hüller, Graner e Arlaud enquanto os sentimentos de cada um em relação ao outro, a si mesmos e ao falecido se tornam mais complexos, Triet corta para um ano depois e nos coloca dentro do julgamento de Sandra.

Enquanto um júri a julgará com base nos argumentos e prova da promotoria e defesa, faremos o mesmo com Anatomia de Uma Queda, construindo por Triet da forma mais afastada e “imparcial” possível. Nada se torna escandaloso ou melodramático. Os procedimentos ganham poder justamente . Se até então Anatomia de Uma Queda parecia segurar a respiração enquanto aguardada ansiosamente, dando a impressão de ter um espaço faltando em seu impacto narrativo, nossa entrada no segundo segmento preenche esse vazio com velocidade e eleva o material justamente por adicionar mais um tom nesse mosaico interpretativo.

A câmera do diretor de fotografia Simon Beaufils passa a se comportar como nosso olho, ou como a câmera de um reality show ou documentário, cruzando a tela em busca da imagem certa e dando zoom nos rostos de pessoas desesperadas para convencer-nos de suas narrativas. É um crédito imenso para a encenação e controle de tom de Triet que jamais nos sentimos perdidos nisso tudo. A complexidade temática se torna palatável graças à clareza de sua direção e por como o roteiro da própria Triet e Arthur Harari flui através de seus personagens, cada um conduzido com cuidado por seu intérprete. Destes, ninguém supera Hüller. Sua atuação, a melhor do Festival de Cannes 2023 e uma indicação obrigatória nos prêmios de fim de ano, Hüller é fácil de ler mas impossível de interpretar. Ela deixa pistas o suficiente para vermos o lado violento de sua Sandra, mas sua vulnerabilidade natural leva cada uma dessas trilhas a uma parede de simpatia.

Enquanto consideramos Sandra, os outros personagens fazem o mesmo. Nenhum passa mais por isso do que Daniel, e Graner faz um bom trabalho impedindo o garoto de virar um termômetro moral para Anatomia de Uma Queda. Triet às vezes apela para sua indecisão como maneira de literalizar demais suas teses, como quando uma personagem lhe diz para decidir em qual das histórias ele acreditará, ou quando ele discursa na frente da juiz sobre os pormenores filosóficos de um tribunal, mas Graner mantém um padrão de humanidade independente da falta de graça dessas cenas.

Um parecer eventualmente será pronunciado, e Daniel terá uma resposta. Mas graças à restrição de Triet em oferecer conclusões fáceis, preferindo estimular nossos sentidos e intelecto, a ambiguidade permanecerá. É menos importante saber se Sandra será declarada culpada ou inocente do que olhar para Anatomia de Uma Queda e chegarmos, nós mesmos, a algum tipo de veredito.

Texto originalmente publicado em 23 de maio de 2023 no Festival de Cannes, onde Anatomia de uma Queda ganhou a Palma de Ouro.

Nota da Crítica
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Guilherme Jacobs
ONDE ASSISTIR

Anatomia de Uma Queda

Crime
Drama
Mistério
2h 31min | 2023
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