Anora combina Cinderela e Joias Brutas para gerar risadas e muita ansiedade
Filme de Sean Baker encontra em Mikey Madison a protagonista perfeita
Crítica
Não demora muito para recebermos a primeira dose de energia pura em Anora, a hilária, devastadora e pulsante comédia de ansiedade dirigida por Sean Baker. A abertura do filme, passeando por um strip club ao som da dupla musical russa t.A.T.u, é um soco na cara que não só nos coloca na mesma sintonia frenética do longa como também faz a primeira sugestão da curiosa ligação da personagem titular, vivida por Mikey Madison, com a Rússia.
Preferindo ser chamada só de Ani, a menina sabe falar russo, e é por isso que é jogada pelo dono do clube na mesa de Ivan, que também tem um nome de sua escolha – Vanya. De apenas 21 anos, o personagem interpretado por Mark Eydelshteyn é como um palhaço da turma, engraçado até quando é babaca, mas o que faz a menina aceitar ir até sua mansão depois de encantá-lo com uma dança erótica é seu dinheiro. Vanya mora sozinho nos EUA, em parte para fugir da vontade de seus pais de colocá-lo para trabalhar, e é herdeiro de uma enorme fortuna. Rapidamente, Ani se vê diante de uma excelente proposta financeira, mas Anora realmente engata a marcha quando há uma proposta romântica.
Parte Cinderela, parte Uma Linda Mulher e parte Joias Brutas, esse filme continua a empreitada de Baker de humanizar profissionais do sexo de vários tipos em seus filmes, e com Ani, ele encontra a oportunidade para tratar de nossa incessante luta contra sistemas desenhados para nos manter nas mesmas classes econômicas que nascemos. Quando a conhecemos, Ani passa as noites sem parar para respirar, dançando e seduzindo clientes para conseguir pagar as contas, mas sequer saindo do lugar. Não é surpresa, então, que ela pule para cima de Vanya. Literalmente.
O relacionamento entre os dois caminha numa corda bamba, mas Baker é tão equilibrado em seu tom e sua construção de personagens que o que poderia ser um desafio parece mais uma brincadeira. No dia seguinte à noite de seu primeiro encontro, Vanya paga para desfrutar dos serviços sexuais de Ani em sua casa por uma hora. Como ela só precisa de 15 minutos, no máximo, para satisfazê-lo, o restante do período dá à jovem a oportunidade de explorar não só a riqueza do condomínio onde seu novo fã reside como também conhecer, aos poucos, o charme improvável do garoto.
Se Madison interpreta Ani com um caos controlada que praticamente demanda a atenção da câmera do diretor de fotografia Drew Daniels, então Eydelshteyn é a vítima perfeita para o feitiço de alguém cuja beleza física, com sorriso largo e olhos magnéticos, é superada pela dose constante de vida sugerida por sua fala e sua risada. É impressionante ver Baker destravando, cuidadosamente, a paixão entre os dois. Como apaixonados pela diversão que são, eles, enfim, são dirigidos a um casamento em Las Vegas (onde mais?). Anora jamais sugere que Ani não está com Vanya por sua conta bancária, mas graças ao charme atrapalhado de Eydelshteyn, o filme também nos convence que ela não está com ele só por isso. Ele é, sim, um abestalhado que gasta horas gritando diante do videogame, gosta de vestir como rapper e fica impressionado com qualquer demonstração de sensualidade, mas de alguma maneira, mesmo sabendo que no fundo ele não tem grandes qualidades, entendemos a decisão dela quando ouvimos Ani dizer “eu aceito.”
É aí que Anora dobra a esquina da loucura. Quando a família de Vanya é informada do casamento, eles entram em ação para anular a união e mandar essa Cinderela de volta pra casa na pior abóbora possível. Se a primeira hora do filme deixa Baker brincar com os clichês de comédias românticas entre classes sociais (é impossível não pensar em Uma Linda Mulher), então a segunda metade, quando Vanya foge dos capangas de seus pais e Ani se vê sozinha com mafiosos russos de terceira qualidade, está banhada no tipo de ansiedade frenética hoje associada com os Irmãos Safdies.
A primeira metade do filme dura alguns meses, mas a segunda acompanha a confusão das 24 horas que precedem o pouso dos pais do menino em Nova York com uma sucessão de piadas ácidas, incômodas e criativas, em especial quando os valentões enviados para convencê-la a desistir do casamento descobrem que não estão preparados para o que ela pode causar, e muito menos para o poder de seu sotaque nova-iorquino. Anora nunca se joga na violência de, digamos, Joias Brutas, mas usa a mesma linguagem de filmes como aquele para encenar o tempo de Ani com esses antagonistas, em especial o quieto e curiosamente sensível Igor (Yura Borisov). Madison e Eydelshteyn criam uma química explosiva, mas o vai e vem da atriz principal, uma tempestade de palavrões e gritos, e Borisov, em tudo seu oposto, oferece o contraste ideal para realçar e incrementar o que vira praticamente uma comédia de erros.
Essa reta final de Anora, que até perde um pouco de energia quando deixa a mansão e vai pelas ruas nova-iorquinas em busca de Vanya, é tão cômica que é até fácil esquecer o grau de tensão vivido pela menina, e as consequências que ela terá se realmente perder a conexão com o garoto. Isso, contudo, nunca sai da mente de Baker e de Madison, que no meio de sua raiva e intensidade deixa aparente a dose certa de medo e insegurança. O diretor, por seu lado, exerce um controle tonal parecido, e aos poucos nos faz pensar se Ani não estaria, de fato, melhor de volta à vida solteira.
Só que isso significa que não há saída fácil para a personagem, e por mais que Baker acelere o ritmo de Anora ao ponto de nos deixar sem respirar, a verdade emocional do filme jamais deixa de ser o centro da atenção do diretor, um artista conhecido por seu tato na hora de tratar qualquer tipo de pessoa como, bom, uma pessoa. Eventualmente, a avalanche de realidade precisa atingir Ani. Mais uma vez contando com uma assistência monumental da parte de Madison, Baker enquadra esse impacto numa última cena que diz tudo praticamente sem falar nada. É uma escolha forte para um filme de língua tão afiada. Mas quando se tem uma atriz, e uma personagem, tão versada na expressão de sentimentos através das palavras, poucas coisas dizem tanto quanto a falta delas.