Bottoms é uma hilária mistura de Clube da Luta e comédia adolescente
Rachel Sennott e Ayo Edebiri brilham no filme de Emma Seligman que chega no Brasil como Passivonas
Crítica
Apesar de suas personagens principais e diretora, todas mulheres lésbicas, Bottoms (cujo título brasileiro aparentemente é o perfeito Passivonas) será instantaneamente familiar para qualquer um que já assistiu comédias adolescentes mais conhecidas dos últimos 25 anos. A forma como a escola vira um universo, com suas próprias regras e realidade, a vida secreta dos professores, as várias tribos e suas histórias paralelas. Está tudo ali. Mesmo muitas vezes se portando como uma desconstrução do gênero, o filme de Emma Seligman é, na verdade, um dos melhores exemplos recentes de como operar dentro dele.
Acompanhando as amigas PJ (Rachel Sennott) e Josie (Ayo Edebiri), melhores amigas odiadas não por serem lésbicas (isso é tão 2003), mas por serem "lésbicas sem talento ou habilidades sociais", Bottoms encontra na subversão o seu sucesso e principal defeito. À primeira vista, Seligman se propõe a perverter a ideia do filme adolescente — deixá-lo mais gay, sangrento e sexy. Ao mesmo tempo (e de forma mais bem sucedida, eu diria) ela e Sennott (sua parceira no roteiro) também estão muito interessadas em existir na mesma linhagem de As Patricinhas de Beverley Hills, 10 Coisas Que Odeio em Você e sua maior influência: Superbad.
É uma indecisão, de certa forma, adequada. Parte da adolescência, especialmente em fases transicionais como o fim do Ensino Médio, é uma crise de identidade. Quem eu quero ser? Como vou me apresentar? Essa incerteza acaba limitando o quanto o longa consegue aproveitar de suas propostas conflitantes — as tentativas de ir contra as expectativas nunca parecem vir com muita convicção, e o filme não tem coragem de abraçar os "clichês" sem vergonha — mas é difícil sair de Bottoms com algo além de um sorriso no rosto (especialmente quando você se lembrar da cena na qual "Complicated" de Avril Lavigne toca).
Estourando as costuras com criatividade, Bottoms aproveita cada cena e diálogo, por menor que seja, para inserir mais piadas, brincadeiras ou ideias. Seligman e Sennott deslancharam como uma dupla promissora com Shiva Baby, e por mais que seu segundo esforço não chegue no ápice de sua estreia, Bottoms mostra a versatilidade delas, deixando de lado o ansiedade agoniante de lá em favor de uma risada mais descompromissada, e ao lado de Edebiri (com quem Sennott tinha uma série no Comedy Central), elas constroem o tipo de filme convidativo que certamente será visto por seus fãs múltiplas vezes. Falas serão decoradas, figurinos virarão fantasias e festas inteiras serão boladas ao redor dele.
Resta saber se sua influência será grande o suficiente para criar clubes da luta em escolas por aí. Na trama, PJ e Josie decidem melhorar seu status social criando um "grupo de autoajuda" que, na verdade, ensina as garotas a lutar (detalhe: nenhuma das duas jamais entrou numa briga). Essa suposta atividade extracurricular rapidamente ganha popularidade (enfurecendo os valentões), já que o jogo de futebol americano contra a escola rival se aproxima, e os dias em torno da partida levantam ameaças por todo lado. Para PJ e Josie, essa é a oportunidade perfeita para, enfim, se aproximar das meninas mais popularidades e, quem sabe, conseguir algo mais.
As cenas de luta, seja no clube ou contra os rivais posteriormente, mostram o perigo que Bottoms muitas vezes busca; cada soco e chute carrega o peso de algo dirigido por David Fincher (especificamente um filme, mas não posso falar sobre ele), e o contraste gritante entre o ambiente de representatividade e suporte permeando a escola (e o roteiro) e essa entrega à violência revela o desejo de Seligman por sangue, como também sua relutância em se render ao mesmo.
A cineasta e suas colaboradoras estão divididas ao meio. Enquanto momentos como estes, ou o plano de vingança contra o galã Jeff (Nicholas Galitzine, genuinamente hilário como o capitão do time que repete seu nome toda vez que aparece) pretendem conferir a Bottoms uma ponta mais afiada, onde há espaço para brutalidade e perversão, Seligman parece relutante em pular de cabeça nessa direção. Ela também quer criar o clima utópico de, digamos, filmes de Richard Linklater, mas por um viés mais progressista. É uma vontade compreensível, mas que vai na direção oposta da atmosfera ousada outrora visada pela cineasta.
O talento da diretora para ambos tons é visível. Assim como há choque e riso desconfortável, há também a vontade de estar presente naquele mundo, andando com esses personagens. Como bom filme adolescente, Bottoms faz cada um de seus momentos — a feira que inicia o ano letivo, as aulas com o professor (Mashawn Lynch, fantástico), as reuniões na quadra — parecerem o centro do mundo, abraçando o surrealismo na dose certa para criar a impressão de um universo real, mas um tanto quanto exagerado, e portanto divertido.
Sennott trafega bem entre os dois mundos. Uma das mais intrigantes estrelas jovens do momento, ela se sente em casa tanto no caos quanto na calmaria, e sua acidez atenuada é perfeita para o sarcasmo e humor macabro de sua personagem. Edebiri não tem a mesma versatilidade, mas oferece um bom centro para todo o absurdo, alguém em quem sempre podemos nos agarrar. O dom de ambas para o improviso deixa sua química cômica fluir independente da natureza da cena, e também acentua as deficiências de alguns coadjuvantes para fazer o mesmo.
Das duas identidades de Bottoms, a menos agressiva é vitoriosa. Por mais que, em instâncias específicas, o filme encontre humor autodepreciativo na violência, sua natureza mais genuína não é só é mais visível, como também mais cativante. Naturalmente, isso o deixa menos perigoso, mas não menos agradável. Se Bottoms se dedicasse plenamente à sua existência como comédia mais perturbada, ou abraçasse sem reservas o classicismo de sua fórmula, ele seria excelente.
Ou, talvez, ela só precise mudar sua abordagem. Na melhor cena de Bottoms, perfeitamente temperada por "Complicated" de Avril Lavigne, Seligman para de tentar servir ambos mestres e encontra drama, comédia, tragédia e esperança justamente nessa contradição. Não há dúvidas de que Seligman consegue acertar nas duas coisas, ela só não consegue fazer isso no mesmo filme, ainda. Nas palavras de Avril, é complicado.
Bottoms será lançado no Brasil ainda em 2023 pelo Prime Video