Cangaço Novo é um espetáculo de cultura pop no sertão
Série do Prime Vídeo passeia com elegância entre a ação e o drama para criar uma história de primeira grandeza
Crítica
O que é cultura pop? Há quem diga que é um assunto de fácil entendimento, abraçado em massa e com legado espalhado pelo cotidiano da população em falas, vestimentas, costumes, comportamento. No entretenimento, especificamente o audiovisual, o termo virou quase sinônimo de franquias gringas. Filmes de quadrinhos, Marvel, DC, blockbusters americanos, fenômenos no streaming como Stranger Things e The Boys. No âmbito nacional, vira e mexe um novo símbolo surge, não com o mesmo impacto dos citados, mas com força semelhante - Tropa de Elite, Bacurau e Cidade de Deus são alguns exemplos. E agora, neste mesmo espaço está Cangaço Novo, a série do Prime Video produzida pela O2 Filmes e dirigida por Aly Muritiba e Fábio Mendonça.
Se posicionar entre clássicos como estes acontecem muito pela consciência popular que transborda a cada episódio. Confiante suficiente para contar uma história sem didatismo comum em produções atuais, o roteiro de Cangaço Novo não se apoia nos ganchos tradicionais do streaming ou na explicação excessiva de sua trama para segurar o espectador. A narrativa pautada pela família Vaqueiro e o filho pródigo que volta à cidade do pai é acelerada o suficiente para uma maratona, mas também parcimoniosa o bastante para não entregar reviravoltas de forma gratuita. O que acontece carrega significado, pois os personagens têm tempo suficiente para deixar o texto respirar, se conectar e impactar quando necessário.
O belo trabalho de regionalização, que abraça perfeitamente sotaque e traz sutis transformações de palavras, é o fio condutor do magnetismo de Cangaço, que encontra em seu elenco o veículo perfeito para montar um espetáculo de cultura pop. A naturalidade com que Alice Carvalho vive Dinorah é impressionante. Os olhos magnéticos da atriz impõem a força de uma velha-jovem que viveu as amarguras de um sertão cruel, e que não vacila em qualquer confronto devido às cicatrizes que carrega na pele e na alma. A imposição que Alice encontra na personagem é um equilíbrio que causa medo e admiração em um curto espaço de tempo - seja na doçura com que protege a irmã Dilvânia, seja na revolta com que contracena com Ubaldo, o protagonista vivido por Allan Souza Lima.
Enquanto Dinorah transpira sentimentos pela carcaça queimada de uma cangaceira vivida, Ubaldo é o legado confuso de quem sai do nordeste sem escolha e volta para se achar. Composto como o tradicional filho pródigo que volta para tomar o lugar de salvador que o pai possuía, o personagem poderia seguir uma jornada do herói comum, mas tanto Lima quanto o roteiro de Cangaço optam por incluir camadas menos óbvias. Ubaldo tem o olhar perdido mesmo quando explode de certeza na frente da gangue, ele segura o choro e a libido o máximo que pode, como se não o fosse permitido sentir além do que é necessário, pois a culpa que carrega não tem origem conhecida, é como um trauma sem causa - até que aos poucos, na terra árida do interior do Ceará, ele começa a entender o que é sentir e, principalmente, pertencer.
E se pertencimento é a busca principal de Ubaldo, a sobrevivência é a do restante de Cratará. Neste aspecto, Cangaço Novo poderia se bastar com as justas dores do nordeste brasileiro. Seus problemas, o esquecimento pelo governo, a negligência política, o preconceito. Muritiba e Mendonça, porém, usam estas mesmas dores para moldar um grupo de pessoas que exemplificam bem a perseverança, complexidade e sabedoria do povo local. Ninguém é estudado, mas ninguém é bobo. Ninguém entende o "dialeto" paulistano, mas todo mundo capta a mensagem. Entre intrigas políticas e conspirações de família, o roteiro do quinteto Fernando Garrido, Mariana Bardan, Eduardo Melo, Erez Milgrom e Viviane Pistache consegue dar cores diversas a todos os personagens no centro de Cangaço Novo. A bandidagem não se sente injustiçada sempre, nem é feliz por ser cruel. Acima de tudo, heróis e vilões alternam de posição num tabuleiro que apenas a humanidade, cheia de erros e traumas, se torna denominador comum.
Eis que entra a herança dos Vaqueiros para entender quem é quem em Cratará - e é justamente aí que o seriado emana seus elementos pop com louvor. A começar pela montagem, que inicia todo episódios com um flashback, e conta em pedaços o passado da família num uso eficiente do formato consagrado de streaming. A atmosfera criada pela fotografia de Azul Serra combina com a dramaticidade dos momentos doces do roteiro, mas vai ainda melhor na tensão, suspense e ação impecável dos assaltos a bancos e tiroteios no meio das pedras do deserto. As tomadas aéreas dão ideia da imensidão em que a história se passa, e também do isolamento que eles têm de um mundo moderno e tecnológico. Ao mesmo tempo, a contemporaneidade das falas, dos celulares, dos carros, das armas e das roupas deixa claro que eles vivem no mundo real. Adendo importante aqui para a impecável caracterização do bando de Ubaldo; as tranças de Dinorah, as tatuagens de Jeremias, o ar paternal das camisas mais velhas de Sabiá e as regatas e correntes de Ameaço. É um grupo de personalidade, acima de tudo.
Mesmo que traga modernidade em todo quadro, Cangaço Novo não se esconde das ligações naturais que tem com obras como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, ou O Cangaceiro, de Lima Barreto. Como elas, a série ignora qualquer possibilidade de definição do que é certo e errado, dando a cada personagem e situação o contexto necessário para decisões e consequências. Ainda mais louvável é ver a falta de vergonha em assumir o aspecto fantasioso como Dinorah tem visões, os flashbacks estilizados e a trilha que mescla piseiro com MPB sem perder o tom de filme de assalto, que é elevado à potência certa com um tema de rock com maracatu. Tal união de elementos, no papel, parece complexa e fora de tom, mas na tela soa natural e cativante.
Como um espetáculo pop que se preze, Cangaço Novo se entende como veículo de entretenimento e consciência social sem maniqueísmo. A jornada de Dinorah, Dilvania e Ubaldo carrega significados universais numa embalagem que atrai por todo o visual, mas também pelo conteúdo que cada olhar, lágrima e risada do povo de Cratará traz. E por mais que pareça, o anti-heroísmo tão em voga na cultura pop não é, necessariamente, o pano de fundo de Cangaço Novo, pois por mais complexa que sejam as atitudes e decisões de seus personagens, o roteiro nunca perde de vista o contexto social em que eles vivem. Não é só por não ter vilões ou mocinhos que a série se faz especial, mas principalmente por entender que os desafios da vida de cada um é o que os fazem o que são: humanos.