O Aprendiz: Sebastian Stan e Jeremy Strong cativam em cinebiografia superficial de Trump
Assistimos ao filme no Festival de Cannes
Crítica
Hollywood falou muito de Donald Trump nos últimos oito anos. Em discursos e palcos, e também em produções onde os sentimentos de nacionalismo e supremacia potencializados pelo ex-presidente dos EUA eram explorados com cuidado e consideração (dois ótimos exemplos recentes: Succession e Armageddon Time). Poucas vezes, porém, vimos Trump ser abordado de forma direta. Não houve, até O Aprendiz, uma cinebiografia de sua vida. Há uma razão para isso.
O que exatamente um filme de Donald Trump vai nos dizer, que nós não sabemos? Um filme não precisa, necessariamente, dizer algo novo para ser válido, mas O Aprendiz, que conta com Sebastian Stan como um jovem Trump nos anos 1970 e 1980, tem o desafio de ser lançado num contexto onde todo debate sobre o bilionário já aconteceu. Todo argumento, contra e a favor dele, é conhecido. Sua personalidade, incluindo os muitos defeitos, viraram pauta diária durante sua presidência, e graças ao poder das redes sociais de falar incessantemente da mesma coisa todos nós tivemos uma dieta constante e nada saudável do homem laranja.
Quando o diretor Ali Abbasi, por exemplo, sugere que Trump deseja poder e dinheiro para se sentir parte de um clube da elite bilionária, essa ligação não soa nada inédita. Nós sabemos. A questão, então, é o quanto o diretor iraniano consegue deixar essa história interessante para o cinema, e o quanto O Aprendiz conseguirá incorporar em seus 120 minutos as ideias associadas ao nome Trump. Essencialmente um filme de origem, ele têm resultados médios. Nunca vazio mas tampouco revelador, O Aprendiz segue uma linha óbvia de ascensão econômica em paralelo à decadência moral para dizer que monstros são criados por outros monstros.
O criador, ou criadores, são Fred Trump (Martin Donovan) e especialmente Roy Cohn (Jeremy Strong), o advogado que ensinou Donald a jogar sujo e usar o nome da América como desculpa para essas ações, praticamente transformando a democracia dos EUA num fim para justificar os meios. O primeiro ato acompanha Trump ainda inseguro, longe dos holofotes, e faz a estranha decisão de apresentá-lo como uma espécie de zebra. Ignore que ele já é um herdeiro rico. Este é o time pequeno pronto para entrar na primeira divisão e causar uma bagunça. Se o começo de O Aprendiz é eficaz, é quase unicamente pelas atuações. Stan não cai de cara numa imitação óbvia (isso vem depois), e deixa seu carisma construir a ponte até a audiência. Strong, por outro lado, faz o tipo de atuação pela qual ele já ficou conhecido; intensa, elétrica, meio exagerada e instantaneamente cativante.
As campanhas para o Oscar dos dois já começaram com a estreia de O Aprendiz no Festival de Cannes, e o mesmo pode acontecer com Maria Bakalova, competente como Ivana Trump. A primeira esposa de Donald, contudo, é reduzida a uma vítima unidimensional para que o filme nos dê uma pessoa através da qual podemos sentir as consequências da depravação do protagonista. Esta vem quando o filme pula alguns anos para a época de Trump como força no mundo imobiliário, e é aí que Stan ativa os motores.
Interpretar Trump é um desafio. Como todo papel de uma figura pública real, ele vem com uma cartilha de expectativas engrandecida pela familiaridade que temos com os gestos de Trump. Stan escolhe interpretá-lo sem muita firula, o que impede a atuação de soar como uma piada do Saturday Night Live. O ator de Soldado Invernal identifica cinco ou seis trejeitos — cadência da fala, movimentos dos braços, expressões faciais, etc. — e os aplica aqui e ali. É relativamente eficaz, mas o funcionamento é muito superficial. Nada nessa interpretação aponta para algo mais profundo. O mesmo pode ser dito do filme.
O Aprendiz está longe de ser uma tragédia, e evita os erros mais perigosos. O filme não tenta recontextualizar Trump (para a frustração de alguns produtores) e nem o transforma num ser nascido do trauma de crescer debaixo da sombra de um pai rigoroso. Abbasi, que cria um vocabulário audiovisual retrô ao usar câmeras de televisão e músicas da época, está contente em encenar uma recriação. Quando Trump ganha mais confiança e vira um egoísta maldoso, se voltando contra Cohn quando este estava claramente morrendo com AIDS, O Aprendiz interrompe sua já superficial exploração de caráter e passa apenas a reproduzir momentos, tipicamente horrendos, protagonizados pelo mesmo.
O roteiro de Gabriel Sherman não é afiado o suficiente, seja para criticar Trump ou para deixá-lo perversamente memorável, quer pelo humor ácido ou pelo grau de sua agressividade. Continuamos engajados devido à direção de Abbasi, que, apesar de não ser brilhante, tem maquiagem o suficiente para atrair o olhar, e pelo talento de atores, em particular o de Strong, cujo trabalho como Cohn na reta final equilibra muito bem a simpatia gerada ao vê-lo descartado por Trump com a consciência de que este ainda é o mesmo homem do começo do filme. Ele ajudou a moldar alguém cujos princípios se resumem a ofender a todos e defender apenas a si mesmo. Essa é, talvez, a única verdade exposta no filme.
Apesar do título, o tempo de Trump como apresentador do programa O Aprendiz não é adaptado. Há alusões ao futuro como presidente, mas não ao tempo na televisão.O Aprendiz, na verdade, aponta para o fato de que Trump não é o primeiro, nem será o último, na genealogia da ganância e do egocentrismo. Ele aprendeu com quem veio antes, e outros aprenderão com ele.