Duna: Parte 2 faz corajosa fantasia sobre religião sem fugir dos padrões de Hollywood
Denis Villeneuve se aprofunda nos temas do clássico de Frank Herbert e apesar de escorregar na condução dos personagens, entrega imersão e discussões poderosas
Crítica
"Nossos recursos são escassos. Medo é o que temos de melhor".
Entre as centenas de frases proféticas ditas pelos personagens de Duna, nenhuma delas talvez englobe melhor os temas abordados pela Parte 2. Sem vergonha de falar sobre o poder da religião no controle de massas, o filme se afasta do ar introdutório e anticlimático da primeira parte e se aprofunda em discussões que não só marcaram a obra de Frank Herbert, como também figuram em manchetes atuais. Conflitos por território, por ideologias, por combustível, por política, por crenças. Tudo isso está aqui, sem espaço para sutilezas, tal qual a grandiloquência dos cenários criados por Denis Villeneuve.
A escala construída no primeiro longa ganha ares mais épicos, tanto na trilha reformulada por Hans Zimmer, quanto nos efeitos e design de produção, ainda mais suntuosos, tomando proveito da tela grande como poucas produções atuais. Enquanto caminha neste ritmo para o desfecho da história de Paul Atreides (Timothée Chalamet), Duna 2 dispensa qualquer subtexto para evidenciar suas diferenças para fantasias como Star Wars ou Senhor dos Anéis — quase não existem alegorias nesta adaptação, mas sim discursos diretos e referências contemporâneas ao destino daqueles que estão aos pés dos poderosos.
Seguindo de onde a Parte 1 encerra, com Paul sendo aceito pelos Fremen — os habitantes do deserto de Arrakis, único planeta onde há a melange, especiaria que é o principal recurso do universo em questão — Duna: Parte 2 vê o jovem, agora somente acompanhado da mãe (Rebecca Ferguson) começando a se entender dentro daquela sociedade. Uma parte acredita que ele é o Messias prometido, outra pensa que é ele uma fraude pronta para colonizar o planeta. Estes dois pontos de vista são dissecados na primeira hora, onde o roteiro de Villeneuve explana cada um de seus argumentos e usa todos os personagens para discursar, quase nunca para contar uma história.
O maior de todos os exemplos é a Princesa Irulan, vivida por Florence Pugh, que literalmente lê textos para contextualizar os acontecimentos de forma mais didática, e para nos lembrar que, apesar de ser corajoso suficiente para chamar a atenção para fundamentalistas religiosos ou políticos que usam fé como ferramenta de apoio, ainda estamos assistindo a uma produção de Hollywood. O mesmo vale para todos os vilões.
Assim como no primeiro filme, eles assumem a figura quase estéril em termos de ameaça, vivendo apenas para desfilar o impecável design de Giedi Prime, o imponente mundo dos Harkonnen. Tanto o barão (Stellan Skarsgard) quanto os sobrinhos (Dave Bautista, Austin Butler) se encaixam na narrativa expositiva de Villeneuve, que enfim consegue escapar destes maneirismos quando deixa a tela respirar nas mãos dos protagonistas.
Encarregado de viver um predestinado que não só se nega a aceitar o próprio destino como o faz a contragosto, Chalamet convence e segura o espectador nas dúvidas e questionamentos de um Paul consciente do próprio destino. A Chani de Zendaya, por sua vez, complementa a trajetória do protagonista não como o óbvio par romântico, mas como a fagulha de emoção dentro de uma narrativa estoica. Javier Bardem, um carismático Stilgar, que provavelmente será visto como alívio cômico, é o real traço de humanidade de Duna 2. Símbolo da fé e dos erros e acertos de um sistema controlador, o líder-guerreiro-religioso lembra a sapiência e devoção de Morpheus de Matrix, e brilha em todas as cenas em que aparece. No deserto de nuances propositais da adaptação de Villeneuve, Zendaya e Bardem são um alento.
Se pelo lado dos personagens há esse contraste, o mesmo não se pode falar dos elementos de ação e fantasia. Aqui está a mais evidente melhoria entre as duas partes. Talvez mais pelos acontecimentos da história em si do que pela condução de Villeneuve, que evolui na construção de mitologia, mas que por mais que a escala e a construção do clímax exijam batalhas e sequências grandiosas, sempre mantém tudo épico, mas breve. Apesar de bem orquestrados, os grandes embates são rápidos e deixam um sentimento de potencial não explorado, quase como encaixes perfeitos para curtíssimas sequências de um trailer.
O fato é que Villeneuve não faz isso sem querer, é o método que ele encontra para manter a narrativa em Paul. São retratos semelhantes aos que ele montou em Blade Runner 2049, Os Suspeitos e até em A Chegada, onde as agonias de seus personagens conduzem a história e tornam o cenário meticulosamente montado em algo menos cartesiano. A diferença em Duna é que o mundo é maior que seus personagens, e Villeneuve obtém seu grande êxito ao propagar as discussões que este universo traz na pele de Paul; o medo personificado, o jovem branco dominando nativos, o príncipe escolhido descendo dos céus, o herdeiro que leva os louros dos antepassados, sem talvez merecê-los.
Como Villeneuve nas suas escolhas para criar Duna, Paul sabe desse retrato de si. Nada é por acaso, nem os caminhos construídos, nem as consequências deles. Com todos os recursos que tem em mãos, o diretor franco-canadense criou um épico que não se esconde das mais problemáticas perguntas que fizeram de seu material base um clássico na literatura. E por isso, também, se torna menos afeito ao ritmo do cinema mainstream.
O filme é mais impactante e acelerado que o antecessor, mas não se distancia muito daquela cadência. Especial pela coragem com que se expõe para um público acostumado a blockbusters puramente escapistas, Duna: Parte 2 nunca deixa sua mente escapar das provocações em tela, e insiste em trazer você para um mundo em que não há muitas esperanças. Apenas um eterno perde e ganha entre mestres e servos, queiram eles ou não.
Crítica publicada originalmente em 26 de fevereiro de 2024.