Aki Kaurismäki mistura comédia romântica e humor seco em Fallen Leaves - Crítica do Chippu
Um cruzamento entre Robert Bresson e Nora Ephron, novo filme do diretor finlandês diverte no impassível
Crítica
Há poucas expressões no mundo de Fallen Leaves, a nova comédia congelada (num bom sentido) do diretor finlandês Aki Kaurismäki. Além dos rostos aparentemente indecifráveis que seus personagens ganham graças ao estilo de atuação do elenco, o filme inteiro parece existir quase como uma página em branco. Seus ambientes, seus diálogos e seus atores se apresentam sem grandes ornamentos. Uma espécie de marasmo se instala. Dentro desse ritmo quieto e pouco revelador, então, momentos exuberantes se tornam importantíssimos.
Dirigido e escrito por Kaurismäki como o cruzamento entre Robert Bresson (cujo Diário de um Padre gerará gargalhadas quando mencionado) e comédias românticas, Fallen Leaves encontra tais momentos nas interações entre Ansa (Alma Pöysti), uma caixa de supermercado demitida após “roubar” um sanduíche vencido há um dia da lixeira, e Holappa (Jussi Vatanen), um alcoólatra incapaz de se manter alguns dias num emprego e algumas horas longe da garrafa. Os dois se notam primeiro numa noite de karaokê, onde um dos amigos do rapaz está convencido de que deu um show mas é visto pelas mulheres como um idoso, e logo partem num encontro de poucas palavras. Nestas ocasiões, o arquear de uma sobrancelha e o piscar dos olhos diz tudo.
Filmado por Timo Salminen com palidez nos exteriores e longas sombras nos interiores, Fallen Leaves parece ser um mundo próprio. Com a exceção de menções da guerra na Ucrânia em praticamente todos os rádios da cidade, exibições de Os Mortos Não Morrem de Jim Jarmusch no cinema e uma rápida pesquisa no Google (acessível apenas por um notebook cujo uso custa 10 euros por meia-hora na cafeteria local), não há vislumbres de um universo além do que vemos na tela. Entre os duradouros silêncios e gestos vagarosos, Kaurismäki encontra o espaço perfeito para o cômico.
Algumas das falas de Fallen Leaves seriam engraçadas em outros filmes. Entregues, porém, com a entonação impassível diálogos como “caras durões não cantam” — frase dita pelo Holappa de Vatanen quando este é convidado para subir no palco naquela memorável noite de cantoria — se tornam ainda mais eficazes. É impagável ver toda a seriedade se transformar em algo beirando a paródia do distanciamento e frieza do cinema europeu, arrancando risadas de acontecimentos absurdos que estariam fora de lugar em obras naturalistas.
Kaurismäki encena Fallen Leaves como um relógio preciso. Cada ação e frase são cronometrados não só para estabelecer a cadência, como também para tornar significativa qualquer aceleração ou estática. São essas reações, que não chegam a ser rápidas mas que levantam um pouco o véu apático de seus personagens, as responsáveis por nos comunicar as mudanças de estado, emoção e humor da obra. Quando Holappa, depois de sofrer um acidente, abre os olhos imediatamente após ser beijado na testa por Ansa, a piada funciona justamente por ser executada de maneira tão seca e direta que é impossível não sentir ambos Vatanen e Pöysti segurando o riso.
Se Kaurismäki, seguro atrás da câmera, mantém-se inabalável, nunca saberemos, mas a recusa incessante de Vatanen e Pöysti de reconhecer o lúdico só não é mais impressionante do que a capacidade de ambos atores de, com micro movimentos faciais, expressar vestígios de humanidade; deixando claro tudo que precisamos saber sem quebrar de vez a linguagem estabelecida no filme. O efeito sob o qual somos capturados é o do contraste entre visual, seja na ambientação árida de cada local ou na serenidade desumana das pessoas, e o texto. Narrando os obstáculos enfrentados por Ansa e Holappa para se reencontrarem e forjarem um relacionamento (nenhum deles maior do que a dificuldade do rapaz de deixar a bebida de lado), Fallen Leaves nos conquista aos poucos. O começo é inegavelmente lento. Cada uma dessas discordâncias entre forma e conteúdo é um passo a mais na construção da história e no nosso envolvimento na mesma, e demora um pouco para chegarmos no ponto desejado por Kaurismäki. Uma vez lá, é impossível desviar o olhar.
O domínio de Kaurismäki é absoluto ao ponto de deixar as constantes menções da invasão russa na Ucrânia fora de lugar. Por um lado, elas ajudam a perpetuar o ar denso de tristeza e desânimo cercando Ansa e Holappa, mas essa concordância temática não é trabalhada bem pelo cineasta. Talvez por ser algo que demanda o tipo de resposta inexistente nessa abordagem (Ansa, eventualmente, diz “guerra maldita!”, mas só), a repetição de noticiários de mortes e desastres destoa da composição do diretor. É como se ele erguesse uma casinha de bonecas quase impecável, mas deixasse sujeira entrar por uma das janelas.
É um erro, mas até os erros em Fallen Leaves são pequenos. Apoiando-se num excelente senso de humor, nas indispensáveis adições da direção de arte e da decoração de sets de Ville Grônroos e Aino Kaurismäki — excelentes ferramentas para que o filme fale mesmo quando todos em cena estão mudos — Fallen Leaves move-se cautelosamente e acerta praticamente cada tentativa de comover, divertir e surpreender. Hilário em sua maneira de fingir que não é hilário, este é um grandíssimo exemplo de como, nas mãos certas, menos é mais.
3.5/5