Fallout é uma adaptação quase perfeita da sensação de jogar os games

Fallout é uma adaptação quase perfeita da sensação de jogar os games

Hilária, nojenta e infinitamente criativa, série baseada nos RPGs da Bethesda entende o que faz dos jogos especiais

Guilherme Jacobs
10 de abril de 2024 - 9 min leitura
Crítica

Há diversos caminhos possíveis na hora de adaptar um videogame para cinema ou televisão. Olhe os últimos 15 meses, e você verá nas duas tentativas mais populares o reflexo dessa variedade. Super Mario Bros. funciona na base do reconhecimento, transportando visualmente fases e personagens para a telona. Na HBO, The Last of Us tratou a história dos jogos como qualquer outra produção de prestígio, se apoiando em grandes atores no processo. O que Fallout, nova série do Prime Video, faz, me impressionou mais que ambas.

Fallout tem seus problemas. Há núcleos secundários muito subdesenvolvidos, motivações pouco exploradas e episódios longos demais. Como um trabalho de adaptação, porém, a produção dirigida por Jonathan Nolan (Westworld) figura entre as melhores já feitas. Na verdade, eu diria que o transporte dos jogos de RPG da Bethesda para a televisão foi praticamente perfeito. O que está ali não é só a recriação fidedigna de elementos deste mundo pós-apocalíptico, mas a mais pura sensação de explorá-lo. Assistir a Fallout é se sentir como quem joga Fallout.

Situada 219 anos depois de uma guerra nuclear devastar o planeta, a série tem a vantagem de não precisar seguir nenhuma história específica dos jogos. Os showrunners Geneva Robertson-Dworet e Graham Wagner pegam a ideia elementar dos games recentes — um habitante de um Refúgio* precisa deixar esse grande bunker subterrâneo para explorar a perigosa e imprevisível paisagem da superfície — e constroem algo inteiramente original. Ironicamente, isso resulta numa das mais precisas reconstruções da experiência do jogador.

*Demorou para termos jogos de Fallout traduzidos em português, então os nomes em nossa língua natal podem confundir veteranos dos games. Vaults são Refúgios. As Wastelands são Ermos. Power Armors viraram Armaduras Potentes e os Ghouls são Necróticos.

Diferente de um jogo com fases como Mario, ou linear como The Last of Us, Fallout tem um mundo aberto. Pise fora do Refúgio, e você pode, literalmente, ir em qualquer direção, fazer qualquer coisa, conhecer qualquer pessoa, amigável ou não, e encontrar qualquer criatura monstruosa transformada por séculos de radiação. É impressionante como, a partir do momento que Lucy (Ella Purnell) precisa deixar seu precioso Refúgio 33 numa missão de resgate, a série consegue transmitir esse senso de escala e aleatoriedade enquanto aborda os principais temas de Fallout.

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Capitalismo, propaganda, idealismo e mentiras são alguns. Os habitantes dos Refúgios, construídos por uma empresa chamada Vault-Tec, que tinha muito a lucrar com o fim do mundo, acreditam que fazem parte da missão de reconstruir o mundo. Com atitudes ingênuas e otimistas, eles se veem como essenciais para a sobrevivência, em especial dos Estados Unidos. A guerra aconteceu em 2077, quando o país havia revertido para um patriotismo cego à la Ronald Reagan; dos carros aos costumes, do medo de "comunistas" à promessa do sonho americano. É em cima desse esqueleto que, dois séculos depois, a história acontece.

Não é preciso dizer que ao sair do Refúgio, Lucy tem vários choques de realidade. Enquanto avança na sua busca e cruza o caminho — em cenas o simples mas importante propósito de perpetuar o sentimento de acaso presente nos games — de figuras cômicas e bizarras, os olhos arregalados de Purnell processam um entendimento novo e radical. De feições marcantes, a atriz funciona bem como repositório para a descoberta, e guia a audiência no conhecimento das dinâmicas únicas de Fallout. Sua inocência é, também, fruto para muito do humor de Fallout. Assim como os jogos, a série é hilária, nojenta e infinitamente criativa.

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Mas Lucy não é a única que precisa confrontar sua visão de mundo. Maximus (Aaron Moten), um soldado da organização religiosa e paramilitar Irmandade de Aço, também passa por uma jornada similar depois que assume, de forma ilegítima, o título de Cavaleiro e passa a se aventurar com sua poderosa armadura pelos Ermos. Ele cresceu acreditando que a guerra aconteceu há décadas, não séculos, e como Lucy e os Refúgios, vê a Irmandade como essencial para o renascimento da sociedade.

Onde Lucy passa por um arco fascinante de perda de inocência, culminando num excelente episodio centrado na visita a outro Refúgio onde sua nova atitude cética é o problema, e não a solução, Max tem um desenvolvimento mais repetitivo. Ele passa por diversas cenas que enfatizam a mesma coisa e o mostram insistindo no seu comportamento. O personagem pela atuação de Moten, que rouba o holofote para si toda vez que a câmera foca em seu rosto expressivo. As motivações, porém, nunca são fundamentadas bem o suficiente para depois serem questionadas de forma interessante. Ainda assim, quando ele encontra Lucy e suas interpretações diferentes da realidade entram em conflito, Fallout tira disso humor e drama.

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Talvez o único personagem que possa realmente afirmar saber a verdade sobre os Ermos e os Estados Unidos, pré e pós-apocalipse, é o Necrótico de Walton Goggins. Alterado geneticamente pela radiação das bombas, ele passou os últimos 200 anos vivendo como um mutante caçador de recompensas, sem muito tempo para gentilezas. Se Maximus representa os temperos militares de Fallout e Lucy fala da propaganda e humor, é com o Necrótico que a série pode virar um faroeste de fronteira. Goggins, sempre excelente em papéis degenerados, é magnético mesmo debaixo da maquiagem, e flashbacks para sua vida antes da guerra estão entre as cenas mais surpreendentes da primeira temporada.

O verdadeiro poder da série, porém, está na união desses três. Lucy tem um arco mais bem trabalhado, Maximus é engrandecido por uma ótima atuação e o Necrótico é instantaneamente cativante, mas nenhum sustentaria essa temporada sozinho (e os poucos momentos que vamos para longe do trio, como alguns retornos aos habitantes do Refúgio 33, retiram quase toda a energia dos já longos oito episódios), mas como Fallout usa as interações, conflitos e laços que surgem da química radioativa entre eles é exatamente a fórmula de seu sucesso.

De momentos quando eles se deparam com homens malucos e monstruosidades perigosas em sequências cuja única função parece ser mostrar com sucesso a eventualidade inerente aos RPGs da Bethesda, até descobertas chocantes sobre as forças que causaram a guerra e hoje ainda operam, esses três personagens combinam para abordar tudo que um fã gostaria de ver na série, e também para ajudar novatos a desbravarem os Ermos. Em Fallout, o jogador pode assumir diferentes papéis e estilos, então é justo que a série use exatamente essa flexibilidade para crescer.

O excelente crítico de videogames Tim Rogers argumenta que videogames encontram drama nos momentos que filmes cortam, e eu tendo a concordar. É nos procedimentos de momento a momento — o meio segundo escondido atrás da parede para poder atirar, o andar por ambientes irrelevantes à história central mas fascinantes visualmente, a liberdade para deixar de lado, por um tempo, o que você estava fazendo — que games crescem, dando agência ao jogador e comunicando suas ideias pelo apertar de botões. Em suma, nos games, distrações são tão importantes quanto qualquer coisa. Fallout é uma das primeiras adaptações a enxergar isso como uma vantagem narrativa, e não um problema.

Todos os episódios de Fallout estarão disponíveis no Prime Video às 22h desta quarta-feira, 10 de abril.

Nota da Crítica
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Guilherme Jacobs
ONDE ASSISTIR

Fallout

Ação
Drama
Fantasia
Ficção científica
0h 59min | 2024
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