Fire of Love e The Fire Within: Dois dos melhores filmes de 2022 têm o mesmo assunto, mas abordagens distintas

Fire of Love e The Fire Within: Dois dos melhores filmes de 2022 têm o mesmo assunto, mas abordagens distintas

Fire of Love, de Sara Dosa, e The Fire Within, de Werner Herzog, documentam e vida e morte dos vulcanólogos Katia e Maurice Krafft

Guilherme Jacobs
14 de novembro de 2022 - 9 min leitura
Crítica

Zeitgeist é um conceito engraçado. A palavra alemã significa uma força invisível dominando as características de um determinado momento, um interesse em comum surgindo aparentemente do nada e tomando o centro das atenções. Seu uso, como o de tantas outras expressões (estou olhando para você, "épico") é tipicamente um exagero. É, por exemplo, uma hipérbole chamar o lançamento, no mesmo ano, de dois documentários sobre o mesmo assunto de zeitgeist. Já aconteceu antes, e de maneiras mais presentes. Como esquecer o Fyre Festival? E ainda assim, o termo parece adequado para Fire of Love e The Fire Within.

Os documentários gêmeos do Fyre Festival (que, aliás, receberam o mesmo título no Brasil) foram fruto de um assunto verdadeiramente do momento. A festa catastrófica de inluencers no caribe foi notícia internacional, envolvia nomes famosos e foi documentada em tempo real pelas redes sociais, inclusive por quem estava lá. A existência de múltiplos filmes sobre os acontecimentos é, de certa forma, mais fácil de explicar. Mas e essa dupla de documentários sobre um casal de vulcanólogos? Como racionalizar o lançamento, com meros meses de diferença, de dois longas-metragens sobre a vida e morte de Katia e Maurice Krafft?

Seus estudos, seu relacionamento e suas imagens transcendentais pautam ambos Fire of Love (traduzido para Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft e disponível no Disney+) e The Fire Within: Requiem for Katia and Maurice Krafft (disponível no History nos EUA, ainda não lançado no Brasil).

O primeiro, dirigido por Sara Dosa e narrado por Miranda July, foi um queridinho no Festival de Sundance em janeiro e segue um caminho mais tradicional, contando a biografia do casal e traçando os óbvios (mas não menos eficazes) paralelos entre sua paixão por vulcões e o amor de um pelo outro. O segundo, dirigido e narrado pelo grande Werner Herzog, faz tudo isso em 10 minutos, e depois direciona seu foco para as fotos e vídeos registrados pelo casal francês.

Ambos filmes usam, em vários momentos, as mesmas cenas, as mesmas entrevistas e chegam, no geral, às mesmas conclusões. Suas abordagens e estruturas, contudo, são claramente distintas. O mais conhecido e premiado é Fire of Love, e de certa forma ele é o melhor ponto de partida para essa curiosa experiência. Além de ser mais didático, o filme de Dosa oferece uma visão geral mais detalhada da vida e do trabalho dos dois. Ambos nasceram na década de 1940, moraram a 20km de distância, e se conheceram quando estudaram na universidade de Estrasburgo. Ela, uma bioquímica. Ele, um geólogo. Os dois eram vidrados em vulcões. Quando se conheceram, então, algo entrou em erupção.

Perdoem-me o clichê, mas ele não só parece justificável, como até obrigatório na hora de descrever o casamento de Katia e Maurice. Os Kraffts eram frequentemente descritos como as montanhas que observavam. "Vocês são vulcânicos?" repórteres perguntariam, mais de uma vez. A dupla eventualmente abraçou essas associações, e Dosa o faz no filme sem grande vergonha. Como não descrever amor como algo que entra em erupção? O relacionamento como explosivo? Se apaixonar é se aproximar do calor. Estudar vulcões também. Katia e Maurice Krafft estudaram amor. As comparações se criam sozinhas, e Dosa faz um bom trabalho de usá-las como motor narrativo do seu documentário, interpretando esse romantismo não como algo a ser diminuído, e sim como a grande tela no qual todo o resto foi pintado. Tais afirmações não são meramente verossímil. Elas chegam ao reino do óbvio. Podemos constatar tudo isso nas imagens dos dois, inesperáveis até mesmo diante da morte certa.

Em seu filme, Dosa nos mostra centenas de gravações inacreditáveis feitas pelos Kraffts de vulcões, lava, erupções e todas as suas consequências — sejam elas boas ou ruins. A narrativa e seus protagonistas são bons, mas esse é o verdadeiro Ás na manga da cineasta. Isso difere a história de Katia e Maurice de todo o resto. Em determinado ponto, a diretora gasta alguns minutos demonstrando a intenção cinematográfica das filmagens, particularmente por Maurice. Apesar de negar ser um realizador, o cientista claramente buscava o melhor enquadramento, a cena mais impactante, o gesto mais comunicativo.

E aí encontramos a diferença entre os documentários. Em The Fire Within, Herzog analisa e homenageia os Kraffts inteiramente através disso. Mais experiente e realizado, Herzog entende que se as imagens transcendentais de fogo, rochas, reações químicas e devastação, são o maior atrativo da história de Katia e Maurice, então ela deve ser contada a partir disso. O lendário diretor alemão comenta de maneira intimista e artística cada movimento dos vulcanólogos, assim como aquilo que capturaram em celuloide.

Herzog encontra um caminho para interpretar tanto o apelo quanto o significado dessas imagens. Como a maneira com a qual os Kraffts se filmam, e filmam os vulcões, mudou através dos anos? O que isso diz sobre eles? No começo, eles são mais tímidos frente às lentes, suas gravações mais distantes. Com o passar do tempo, e como fruto das experiências vividas, eles passam a dedicar seu olhar a outras coisas, a se comportar de forma mais solta, a retratar os elementos de um jeito mais cinematográfico do que científico.

É uma perspectiva possível apenas pelas suas décadas como diretor, incluindo documentarista, e é o que torna The Fire Within o melhor dos dois filmes sobre os Kraffts. Fire of Love é mais acessível, e até recomendo vê-lo primeiro, mas The Fire Within consegue ir mais a fundo na psique de Katia e Maurice, no significado de seu trabalho, e o faz justamente se firmando no aspecto de maior destaque do seu primo não tão distante. As imagens.

A mistura cósmica de preto, laranja e vermelho nos rios de lava fluindo em velocidades impossíveis. O nascimento instantâneo de rochas quando este calor encontra a frieza dos oceanos. As paisagens extraterrestes deixadas pelo derramar de lama e tremer da terra. As erupções e nuvens de fumaça arrebatadoras e assustadoras. É imponente. É destruidor. Entender onde os Kraffts estão quando filmam e fotografam tais fenômenos, o quanto eles se aproximam, qual seu ângulo escolhido, e como se posicionam dentro da cena, diz tudo sobre eles.

Como acontece quando assistimos a dois filmes tão semelhantes, a experiência se mostra complementar e comparativa. Ganhamos uma noção mais colorida do assunto, e inevitavelmente criamos em nossa mente uma preferência por alguma das pinturas feitas. Assistir a Fire of Love e depois The Fire Within (novamente, vão nessa ordem), porém, se torna um processo ainda mais curioso devido ao fato do segundo documentário existir quase como um comentário do primeiro, simultaneamente abrindo mais o quadro e mergulhando mais profundamente na sua textura. É como ver um vulcão entrar em erupção, e depois pular no centro da cratera em chamas.

Nota da Crítica
Guilherme Jacobs

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