Megalopolis é um sonho trágico, belo e imperfeito de Coppola
Lançado no Festival de Cannes, filme já nasce divisivo, mas nunca esconde sua verdadeira intenção
Crítica
É quase impossível falar sobre Megalopolis sem falar das circunstâncias de sua criação e lançamento, até porque o filme — descrito pelo diretor Francis Ford Coppola como um projeto dos sonhos que tenta fazer há quatro décadas — aborda a discussão sobre gênios incompreendidos, arte e mundos, ou indústrias, que necessitam de uma renovação criativa para salvar suas almas. Estranho, ousado e instantaneamente polêmico, o filme tem sido descrito como genial por uns e como algo impossível de se distribuir por executivos. A estreia no Festival de Cannes perpetua isso.
A primeira exibição se encerrou em meio a aplausos, vaias e câmeras e microfones enfiados na cara de críticos confusos em busca de respostas. Isso é só uma prévia do que virá daqui pra frente. O cinema voltou. Goste ou deteste, Megalopolis é um trabalho que demanda sua atenção e cobra uma resposta. Financiado pelo próprio Coppola com, supostamente, US$100 milhões de seu próprio bolso, o filme existe numa escala raramente disponível para produções independentes, e o resultado disso está em cada frame. Da mistura de temas ao estilo de atuação, da disposição ao cafona até o intrigante, Megalopolis impressiona mesmo quando frustra.
Sempre fascinado por sistemas hierárquicos onde há líderes como generais e mafiosos, assim como ícones que vêem seus tempos acabando, sejam eles delinquentes da era grease ou vampiros diante da industrialização, Coppola faz com Megalopolis um filme que discursa com sua carreira inteira. Situado numa Nova York alternativa que se chama Nova Roma e protagonizado por personagens com nomes como César, Cícero e Cláudio (Coppola não estava brincando quando ele disse que pensa o tempo todo sobre o Império Romano), o longa dobra o tempo e costumes para traçar paralelos históricos e culturais entre os reinos do passado e do presente, e examinar como ambos caem.
O impacto visual de ver carros de polícia comuns cercados por pessoas cujas vestimentas são inspiradas por togas e vestidos da antiguidade é imediato, assim como o trabalho de cor que banha a cidade em dourado. Impressiona também a direção que Coppola deu para seus atores, incluindo Adam Driver, Giancarlo Esposito, Nathalie Emmanuel e Aubrey Plaza, para abraçar sem reservas um melodrama digno dos anfiteatros mais antigos num filme apresentado na carta de título como uma fábula. A forma novelesca com a qual o grupo encena toda a obra vai desligar boa parte do público, mas aponta para a proposta atemporal de Megalópolis. Em determinada cena, Driver recita “Ser ou Não Ser” palavra por palavra, e esse momento está longe de ser o mais teatral dos 130 minutos de projeção.
A peça da vez é sobre César e Cícero. O primeiro, interpretado por Driver, é um arquiteto genial e, claro, incompreendido que sonha em reconstruir a metrópole com um novo material e uma nova filosofia. Contra ele está o personagem de Esposito, prefeito da cidade e, pelo menos publicamente, a favor do cidadão comum, elemento que César estaria esquecendo ao traçar seus grandes planos. Circulando os dois estão Julia (Emmanuel), filha do político mas apaixonada por seu rival, e Cláudio, vivido por Shia LaBeouf com uma energia dividida entre Coringa, Joe Rogan e Donald Trump. A melhor atuação, porém, pertence a Plaza, a quem César rejeita como amante e cuja busca por vingança permite a atriz a exercer seus melhores traços, como humor seco e reações enlouquecidas.
Descrever isso tudo já aponta para a gama de ideias que passa pela mente de Coppola, e o filme nem sempre se mostra à altura daquilo que ele se propõe. De cenas claramente gravadas com ADR a um descontrole de tom bizarro, Coppola parece criar aqui mais um filme destinado a ser recortado pelo diretor inúmeras vezes, até que seu trabalho com técnica alcance as ambições em tela. Há inúmeras ideias inspiradoras e curiosas em Megalopolis, a começar pelo paralelo entre o clássico e o pós-moderno para diagnosticar problemas mais elementares da nossa sociedade e oferecer como solução uma quebra completa do paradigma. Se o tempo é um círculo, como a fusão entre épocas aqui sugere, é necessário algo profundamente radical para freá-lo.
Desenvolver essa conversa, porém, é um processo repleto de problemas para o filme. Em particular devido ao tom desequilibrado provocado por decisões que variam da direção à montagem, Megalopolis parece tropeçar em si mesmo toda vez que constrói energia suficiente para nos envolver em seus gestos mais épicos. E por mais que o carisma natural de nomes como Driver e o talento nato de Coppola para compor uma imagem signifique que não há um segundo sem vida em todo o filme, faz-se necessário um rigor melhor para orquestrar todos esses elementos. A sintonia é dispensável, mas é preciso mais intenção na cacofonia.
De todas as perguntas levantadas pelo filme, a mais bem explorada é a do tempo. Coppola é um cineasta obcecado com o tempo, seja como ferramenta de avançar tramas ou como algemas que nos prendem ao mundos dos quais queremos escapar. Seja porque seu auge veio nos anos 1970, ou porque sente saudade de outros ares quando diretores como ele eram mais celebrados, Coppola vive refletindo sobre o andar do relógio, e como é representado por uma habilidade nunca explicada do personagem de Driver, de congelá-lo, e assim preservar uma cultura, uma geração ou uma existência. Megalopolis reflete sobre tudo isso, mas também nos chama a começar uma nova realidade e um novo tempo. Tanto no que é dramatizado quanto em como o drama vem.
Para além disso, cria-se um debate sobre popularidade, cancelamento, insurreição, criatividade, história e civilizações, e acima de tudo um debate facilmente transportado para política, estudos sociais e, claro, cinema, um mercado que já começou a rejeitar Megalopolis ao descrevê-lo como uma venda impossível, novamente lançando Coppola a posição messiânica de artista revolucionário que ele mesmo quer ocupar. Para o crédito do cineasta, Megalopolis não se esconde do egocentrismo necessário para isso. O filme nega aos personagens de Driver e Esposito papéis fáceis de herói e vilão enquanto Coppola dá a cada um deles facetas de sua própria personalidade — o primeiro nome de Cícero é, obviamente Francis — em busca de reconhecer os lados negativos da obsessão por criações grandiosas. Ainda assim, estamos falando do homem por trás de Apocalypse Now. No fim do dia, a briga entre quem está disposto a arriscar tudo para reinventar o sistema e o burocrata cuidadoso terá um claro vencedor, e ainda bem.
Megalopolis é profundamente imperfeito, e profundamente verdadeiro. Sua existência, por si só, está sendo um divisor de águas, e sua execução só aumentará o grau disso. Intrigante até por suas falhas, aqui está um filme concebido simplesmente como uma obra feita por um criador disposto a colocar as próprias finanças para nos dizer como é necessário abraçar a arte, por mais confusa, complicada e não-comercial que ela seja. As consequências disso nem sempre são bem-sucedidas, mas há beleza até nisso, pois elas o deixam mais necessário, afrontoso e imprevisível.