
Noite Passada em Soho - Crítica do Chippu
Novo filme de Edgar Wright com Thomasin Mackenzie e Anya Taylor-Joy explora os perigos da nostalgia

Crítica
Na primeira vez em que passei por Soho - um dos bairros londrinos mais badalados, cheios de cultura e repletos de história (boa e ruim) em toda a capital britânica - as luzes neon e restaurantes de vanguarda arregalaram meus olhos. Era uma das primeiras viagens profissionais da minha vida, e como qualquer pessoa no começo dos 20 anos, aquele era o tipo de lugar que eu sonhava em conhecer. E eu fui, gastei horas andando pelas ruas nas quais Noite Passada em Soho, o novo filme de Edgar Wright, se passa. Sem mapa, plano ou acompanhante, eu pude me perder (literalmente) nas calçadas, dobrando em ruas puramente por impulso e descobrindo segredos. Mas, antes de ir, um colega jornalista me informou do lado mais barra pesada do local, só como um alerta para minha atenção. Ele não me desencorajou a ir, mas certamente adicionou uma segunda camada ao local; havia algo além do brilho. Algo dentro das paredes. Não era suficiente para ofuscar o esplendor do local, mas o contraste estava lá. Luz e sombras.
Todos os filmes de Edgar Wright estão banhados de nostalgia. Seja nas referências e quebra de clichês da trilogia Cornetto (particularmente Shaun of the Dead), a reprodução da estética de videogames e quadrinhos em Scott Pilgrim Contra o Mundo, ou o vício musical de Em Ritmo de Fuga. Seus personagens, até então sempre homens com complexos adolescentes, precisam deixar o passado para trás e confrontá-lo para finalmente viver no presente. Com Noite Passada em Soho, infundindo de neon e inspirado no cinema Giallo, este subtexto se torna o texto em si. Aqui, os perigos nostálgicos se materializam para perseguir a primeira protagonista feminina do diretor, Eloise (Thomasin Mackenzie), uma jovem quieta, com talento para desenhar roupas e, aparentemente, a capacidade de ver espíritos como o de sua falecida mãe.
Ellie, como ela quer ser conhecida, sai do interior da Inglaterra em busca de realizar seu sonho numa faculdade de moda em Soho. A Londres de sua mente permanece nos anos 60, é a casa de bandas inovadoras, de festas com homens em terno e mulheres de vestido, e qualquer um pode realizar seu sonho ao chegar na cidade grande com motivação o suficiente para vencer. Uma viagem com um taxista estranho e uma noite ao lado de suas colegas esnobes e barulhentas depois, seus olhos começam a perceber como nem tudo é idêntico aos seus sonhos vintages. Sua decisão imediata é se afastar, procurar um quarto antigo, como o do prédio da Sra. Collins (Diana Rigg) e voltar no tempo para encontrar a inspiração de seus novos designs. O desejo de visitar o passado se torna quase literal quando, ao dormir em sua nova cama, sua conexão espiritual a leva para a vida de Sandie (Anya Taylor-Joy), uma jovem cuja voz só não supera seu incrível ar de confiança e estilo.
Sandie está pronta para conquistar Londres. A primeira noite de viagem no tempo, se é que podemos chamar assim, é a droga mais viciante com a qual Ellie podia entrar em contato, e Wright aciona todos os motores para nos transportar junto com a garota. A fotografia de Chung-hoon Chung torna cada prédio de Londres um monumento, o design de produção de Marcus Rowland traz a noite à vida e a edição de Paul Machliss nos impacta com quadro após quadro de beleza, música e showbiz, construindo uma sequência visualmente intoxicante e aumentando o volume da excelente trilha sonora (repleta de clássicos como The Searchers e Siouxsie and the Banshees, mas fugindo do óbvio do rock britânico da época) ao máximo para dominar nossos sentidos. Talvez haja uma razão por trás da nostalgia. Talvez os bons tempos realmente tenham sido bons, talvez tenhamos nascido no fim de algo bom. O neon, entretanto, gera tantas sombras quanto luz.
Wright, junto com a roteirista Krysty Wilson-Cairns, sabe que há algo especial naquela época. Há o que celebrar em Soho. A cultura é palpável, a empolgação contagiante, as possibilidades infinitas. Se este filme fosse protagonizado por Nick Frost e Simon Pegg, eles iriam ao delírio naqueles pubs. Inicialmente, Sandie e Ellie se encantam pelos ares da vida noturna, pelo potencial adiante, a promessa do estrelato, e encontram nisso confiança para colocar seu talento em prática, impressionando e conquistando audiências e professores. Eventualmente, porém, a manhã chega e os arrependimentos frutos da noite passada ficam claros como o dia.
Nossa cultura, desesperada por voltar a tempos cuja qualidade geralmente existe mais em memórias do que em verdade, está perdida na nostalgia. Remakes e reboots povoam o cinema e televisão, álbuns são relançados e o retorno à familiaridade move a indústria do entretenimento, tudo na missão de deixar a audiência (ou em alguns casos, o consumidor) com a sensação de casa. Jovens (normalmente brancos, afinal a experiência negra sempre foi outra) expressam o desejo de ter nascido nos anos 50, enquanto os mais velhos insistem em negar avanços sociais e culturais simplesmente por serem promovidos por quem não tem, ainda, um quarto de século nesta Terra.
Edgar Wright pode, facilmente, ser acusado de permear essas ideias em seus filmes, mas ele sempre pareceu ciente dos perigos desta tendência. Em Soho, pela primeira vez, o cineasta que um dia quase entrou no MCU com Homem-Formiga, decide exercitar seu conhecimento cultural de outra forma. Aqui, a relação entre passado e presente, obra e recriação, e expectativa e realidade, não é só o tempero, mas o prato principal. Depois de algumas noites, Eloise começa a ver a transformação da vida de Sandie, os palcos dão lugar à cama, os romances reais com outros garotos viram homens com 10, 20 ou 30 anos a mais, e os "fãs" agora a veem como um objeto, algo com a obrigação de prover prazer. Seu agente, interpretado por Matt Smith com iguais níveis de carisma e ameaça, encarna a violência verbal e o charme venenoso deste tipo de agressor. Conforme nossa heroína descobre mais a verdade de Sandie, a realidade dos anos 60 sangra em seu cotidiano, afetando sua mente e a levando numa jornada investigativa em busca de vingar crimes esquecidos.
Tecnicamente falando, essa jornada representa o ápice da direção de Wright. Quando entramos no segundo ato da história, mergulhando de cabeça na viagem, Noite Passada em Soho conta com todas as assinaturas do cineasta: frames inseridos no meio de composições que, por si só, já são criativas, montagens musicais, cortes inesperados e uma mistura de realidade e fantasia povoam a tela. As luzes neon são usadas para pintar as cenas com um vermelho sangrento ou trevas azuis, representando a masculinidade tóxica capaz de não só destruir, mas até perverter os sonhos de jovens mulheres. As sombras são tão densas quanto as luzes são ofuscantes. Wright e Wilson-Cairns, sabiamente, reconhecem como os anos nostálgicos de uma pessoa normalmente representam os pesadelos que ainda assombram outras.
Para esse contraste, Mackenzie e Taylor-Joy são perfeitas. A primeira atriz é perfeita como avatar de inocência, de uma sonhadora, de alguém cujo passatempo é escutar Beatles e assistir a repetecos de Friends, constantemente afirmando ter nascido na época errada. Mais tarde, ela precisa mudar conforme o material entra mais na loucura, e Mackenzie apresenta uma faceta nova de seu arsenal interpretativo, arregalando os olhos e se tornando apropriadamente irreconhecível ao ritmo do desespero de sua personagem atormentada. Exalando sex appeal e confiança, do outro lado, está Taylor-Joy. Assim como Sandie deseja ser o centro das atenções e se deleita em receber os holofotes, a atriz parece estar em casa no centro da tela, dominando os closes com seus traços profundos e olhos marcantes. A dupla funciona como lados da mesma moeda, ambas saindo da fantasia ao serem confrontadas com a realidade suja e sombria da cidade.
O terceiro ato, então, confia suas esperanças na capacidade de ambas personagens de quebrarem o paradigma, encontrar a arte e beleza na realidade, se reinventando e interrompendo um ciclo vicioso de abuso. É uma excelente premissa, e por isso a maneira como Wright decide encerrar a obra se torna tão decepcionante. É impossível entrar em detalhes sem falar de spoilers, então por hora basta dizer que uma das reviravoltas de Noite Passada em Soho essencialmente trai a mensagem temática do filme como um todo. Noite Passada em Soho não é um longa com vibe de pregação. Seus temas não estão escondidos, mas a claridade serve mais como uma textura constantemente presente, enriquecendo a obra, visíveis o suficiente para tornar o rumo da conclusão da trama tanto frustrante quanto confuso. O mais curioso, inclusive, é como Wright parece reconhecer isso, tentando resgatar o filme em tempo real com atos de bondade e empatia na busca de redimir personagens e acontecimentos. É tarde demais. O gosto amargo já está na nossa língua.
Esta névoa final não é suficiente para esconder todos os excelentes feitos de Noite Passada em Soho, seu estilo, sua energia e elenco são bons demais para que a obra toda se perca. Mas aqui, pela primeira vez, Wright parece incerto quanto à direção de sua história, deixando o comando narrativo alguns patamares abaixo de seu domínio técnico. Graças ao bom trabalho de personagem e à excelente atuação de Mackenzie, permanecemos na jornada até o fim, apegados à protagonista e seus dilemas. Entretanto, assim como ela nota a realidade sombria das noites coloridas de Soho, os defeitos deste mundo até então imaculado ficam expostos, revelados pelo amanhecer final.
Nota: 3.5/5

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