O Assassino: Intenso suspense de David Fincher faz sátira perversa do trabalho no Século 21
Estrelado por Michael Fassbender, thriller coloca o olhar frio do diretor sob si mesmo
Crítica
"Siga seu plano. Não confie em ninguém. Proíba empatia. Siga o plano. Preveja, não improvise. Nunca ceda uma vantagem. Lute apenas a batalha para qual você foi pago. Pergunte a si mesmo: 'O que eu ganho com isso?' Siga o plano." Esse é o mantra que o personagem sem nome de Michael Fassbender repete diversas vezes em O Assassino, o divertidamente ácido suspense de David Fincher sobre um matador de aluguel que decide se vingar de seus chefes depois de receber uma punição inesperada após errar um tiro.
Essa religiosidade niilista ajuda o Assassino, que logo admite não ser uma pessoa de destaque em sua profissão, a cumprir suas tarefas. Interpretado por Fassbender com a exatidão de alguém constantemente equilibrado no limite de uma explosão, esse homem usa a indiferença e frieza para se manter dias em quartos vazios, olhos fixos em janelas do outro lado da rua, aguardando pacientemente a oportunidade perfeita para puxar o gatilho. Cada movimento, seja ele um alongamento de ioga ou o montar do rifle, é encenado sem a menor gota de indecisão. A máquina funciona de maneira precisa.
O discurso, claro, pode muito bem ser usado pelo diretor em sua mente antes de gritar "ação." Estamos falando, claro, do cineasta que fez Jessie Eisenberg e Rooney Mara atuarem a abertura de A Rede Social quase 100 vezes (99, para ser exato), que transformou Jake Gyllenhaal no ator perfeito para papéis surtados depois de enlouquecê-lo em Zodíaco, e cuja filosofia, segundo ele, é que todos os humanos são pervertidos. Nas palavras do Assassino, incrédulo na fé que as pessoas depositam na suposta bondade inerente da humanidade: "baseado em que?"
Certamente não nessa filmografia, composta por trabalhos agoniantes e magnéticos sobre psicopatas, obsessivos e profissionais. O protagonista de O Assassino se encaixa com tranquilidade no legado deixado por Tyler Durden, Robert Graysmith e Mark Zuckerberg, mas mais do que todos eles, ele parece virar o cano da arma para o próprio diretor e colocá-lo no centro da mira. Boom.
O Assassino é exatamente o que você imagina que é. Vamos para Paris, Nova York, República Dominicana e Chicago. Colegas viram rivais. Balas atravessam cabeças, incluindo na melhor e mais brutal cena de luta do ano, e traições ocorrem. Longe de tentar reinventar a roda, David Fincher busca adicionar sua assinatura em todos os marcos do gêneros. Isso significa executá-los da maneira mais excelente e calculada, mas significa, também, rir de si mesmo. Seria hipocrisia da parte do realizador tratar de alguém tão metódico quanto ele e não arranhá-lo como fez com programadores e detetives. Fincher sabe o quão ridículo é dizer em sua cabeça "siga o plano" depois de voltar para casa, ver sua amada Magdala (a brasileira Sophie Charlotte, boa no seu limitado tempo em cena) gravemente machucada, e decidir jogar fora das regras.
Ele quer desestabilizar a si mesmo, uma noção perpetuada pelo seu uso de câmera na mão, uma técnica raríssima em seu estilo, em cenas onde o caos interno do personagem parece transbordar seu exterior lacrado. O dogma, antes a oração de um protagonista clássico de thriller, vai soando cada vez mais vazio ao longo da obra. "Lute apenas a batalha para qual você foi pago," ele diz enquanto toma decisões inteiramente pessoais.
Há um grau cômico em tudo isso. O sarcasmo desarma O Assassino e tempera os acontecimentos com uma corrente de metalinguagem bem-vinda, mas talvez nada demonstre tão bem a autodepreciarão de Fincher, e seu diagnóstico da sociedade, quanto a análise deste filme a partir do ponto de vista do trabalho. Em suas missões, o Assassino de Fassbender usa ferramentas como Airbnb, WeWork e Amazon para ganhar vantagens. A presença dessas marcas, cúmplices na desumanização de diversos áreas do cotidiano, do varejo ao subúrbio. Na mão de Fincher, esses elementos da pós-modernidade tecnológica são resumos ideais para seus temas de afastamento pessoal e autoengano.
O Assassino titular acredita que sua posição única, distante dos alvos de forma emocional e física, lhe coloca como parte da minoria que explora a maioria. Sua conta bancária quase tem dinheiro o suficiente para fazê-lo acreditar estar no 1% do 1%, mas depois de sofrer o equivalente a uma demissão, ele se descobre (com ajuda de uma espetacular cena com a assassina de Tilda Swinton), um empregado. A ilusão se vai. É um sútil e ciente comentário de um diretor que hoje goza de aparente liberdade dentro de um sistema capitalista (ainda por cima numa marca como a Netflix). Todos são descartáveis. Todos somos conteúdo. Todos somos números.
Essa percepção faz de O Assassino um dos melhores filmes sobre a vida moderna. Junto com a clareza da fotografia digital de Erik Messerschmidt, o exímio design sonoro e a trilha sonora pulsante e afiada de Trent Reznor e Atticus Ross, David Fincher transforma a seu filme no reflexo da vida dentro do mercado, onde nem mesmo o assassino mais letal e eficiente é capaz de obter a perfeição incessante necessária para sobreviver. Ele é humano, claro. É a única explicação para o tiro errado. O Assassino, David Fincher, e nós mesmos, podemos achar que uma hora seremos excelentes o suficientes para tornar isso aceitável, mas dentro desse mundo impiedoso e mercenário, não há esperança. Não há plano para seguir. Você não tem nada a ganhar.
O Assassino está em cartaz nos cinemas brasileiros e entra no catálogo da Netflix em 10 de novembro.