O Menino e a Garça é despedida de um gênio do cinema tentando se entender como filho
Hayao Miyazaki mergulha na psicodelia em história com viagem no tempo e relações familiares
Crítica
Não é estranho para Hayao Miyazaki explorar todos os cantos que a fantasia e animação conseguem chegar juntos. Há alguns anos, o cineasta por trás de obras como Princesa Mononoke e Meu Amigo Totoro anunciou aposentadoria. Desta forma, uma legião de fãs ficou órfã de seus filmes, tidos por muitos como uma coleção de obras-primas que desenham como ninguém as aflições humanas junto com a doçura e inocência que permeia infância, amores e relacionamentos. Para a surpresa de muitos (mas não todos), Miyazaki volta à ativa, e ainda mais intenso, com O Menino e a Garça, exibido no Festival de Toronto 2023 e que se inspira no livro de Genzaburo Yoshino chamado “Como Você Vive?”.
O título desta obra, inclusive, resume melhor o principal tema do filme do que o nome escolhido para a produção. Por outro lado, não seria uma obra do Studio Ghibli se não houvesse um significativo tom de fábula e humor peculiar. Miyazaki mistura pedaços da própria vida para contar a história de um garoto que perde a mãe e precisa se mudar para o interior do Japão com o pai, um empresário que trabalha para o exército em meio a Segunda Guerra. Na paisagem encantadora e cercado de senhorinhas que cuidam dele como um novo neto, o garoto Mahito explora os arredores em meio a dor de sua perda até descobrir uma torre misteriosa que é guardada por uma garça cinza. A partir daí, a dupla mergulha numa fantasia que abre mão de qualquer didatismo ou regra convencional sobre tempo e espaço para abordar questões como luto, escolhas, destino e criação da vida.
Assim como Soul, da Pixar ,O Menino e a Garça joga o protagonista em uma espécie de Além cheio de alegorias visualmente infantis (Pixar usa nuvens e Ghibli, aves) para discutir a mortalidade e propósito. A diferença entre ambos está na forma de explanar ideias, já que Miyazaki abre mão de qualquer monólogo direcionado ao espectador e, ao detalhar a mitologia, mergulha ainda mais nas decisões e sentimentos do protagonista, o fazendo amadurecer a partir de aprendizados feitos na prática.
Na dor, no sangue ou, simplesmente, na perda. Miyazaki também faz o seu próprio Alice no País das Maravilhas ao transformar o luto em fogo e superpoderes, ou o militarismo em papagaios fardados, ignorantes e incapazes de olhar para o bem maior - tudo isso pintado em um quadro que nunca parece completamente definido, como o mundo real, mas que transborda identidade e tem ambientação impecável.
Mesmo que pareça uma grande homenagem ao próprio trabalho do autor, que ressignifica símbolos e até a própria história a partir da relação de Mahito e a mãe, o filme traz discussões existenciais que se tornam abstratas o suficiente para serem aproveitadas por quem não conhece Miyazaki. Por outro lado, a narrativa forçada pelo título não recompensa quem espera uma relação entre a dupla supostamente protagonista, já que o longa busca discutir perda e reconstrução mais do que um provável companheirismo. E por mais que pareça distante da excelência de outras fábulas Ghibli, O Menino e a Garça serve como peça crucial no currículo do estúdio, não só pela volta de seu maior símbolo ainda em ótima forma, mas pela honestidade com que coloca em dúvida as certezas desenhadas em animações anteriores.
Crítica publicada em 8 de setembro durante o Festival de Toronto. O Menino e a Garça estreia no Brasil em 22 de fevereiro de 2024.