O Mundo Depois de Nós imagina um apocalipse que já começou
Suspense com Julia Roberts e Mahershala Ali tem paralelos assustadores com a realidade
Crítica
O Mundo Depois de Nós, o romance de Rumaan Alam agora adaptado para filme por Sam Esmail para a Netflix, saiu em pleno em 2020, um timing infelizmente impecável para uma história sobre o fim do mundo cujos mistérios deixavam vazios para preenchermos com diversos comentários sociais sobre nosso presente. No longa-metragem, que estreia sexta-feira (8) e traz um elenco estrelado (Julia Roberts, Mahershala Ali, Ethan Hawke, Myha'la), há menos segredos. Ao fim de seu tempo, respostas suficientes são dadas para entendermos o que aconteceu, de certa forma.
No lugar da ambiguidade total, porém, Esmail adiciona uma ponta afiada. Um espelho. Se o romance tratou o armageddon como algo amplo o suficiente para comportar qualquer tipo de ansiedade, o filme imagina uma tragédia que já se iniciou, e apesar de ainda deixar espaço para imaginação, a adaptação de O Mundo Depois de Nós quer nos assombrar mostrando o quão perto do absurdo nós já estamos.
O fio condutor dessa ideia é Amanda (Roberts), uma profissional de publicidade que, motivada por seu ódio contra humanidade, decide reservar uma linda casa nos arredores da cidade de Nova York para que ela, o marido (Hawke) e seus dois filhos (Farrah Mackenzie e Charlie Evans) improvisem um período de férias longe de todo mundo. Na praia mais próxima, algo estranho acontece, mas a família decide continuar. Então, dois estranhos acontecem.
G.H. (Ali) e sua filha Ruth (Myha'la) batem na porta de Amanda numa noite, e dizem que aquela, na verdade, é sua porta. Ela alugou a casa deles, e agora eles precisam voltar pra lá. O motivo de seu retorno foi um apagão que deixou a cidade nas trevas e inundada por crime e violência, e eles querem dormir no seu lar. Amanda e sua família podem ficar, claro, e G.H. está disposto a fazer um reembolso se ela quiser. Ele só não vai, de jeito nenhum, voltar para NYC.
Daí em diante, O Mundo Depois de Nós traça duas linhas de tensão que vão ficando cada vez mais grossas. Por um lado, os acontecimentos estranhos, e a distopia de suas consequências, se tornam inescapáveis; animais se comportam de forma bizarra, celulares e televisão param de funcionar, e assim vai. Em paralelo, Amanda, que já não tem uma boa visão de outras pessoas e parece ter uma pontinha de racismo, não facilita as coisas para os seus novos colegas de quarto.
Esmail, e os produtores Michelle e Barack Obama, claramente escolheram uma Mensagem (com M maiúsculo) para transmitir com O Mundo Depois de Nós, e de fato há uma certa simplicidade na forma como diversas sequências são fruto de engenharia reversa para criar uma situação desafiadora para os personagens, Amanda em especial, num nível pessoal. Assim, O Mundo Depois de Nós tem oportunidades convenientes de argumentar suas ideias em discursos, brigas e interações pedantes e óbvias.
Felizmente, a maior parte dessas cenas envolve atores como Roberts, Hawke e Ali, todos capazes de elevar papéis e preenchê-los com facetas ausentes no texto. Ali em particular é magnético, e quando as suspeitas de Amanda começam a sumir, o charme natural do ator é tão importante como justificativa para o abrir dos olhos da mulher, que enfim vai baixando a guarda, quanto qualquer desculpa narrativa. Atuando praticamente na contramão do tipo de personagem que a tornou lendária, Roberts exercita músculos diferentes e consegue passar a impressão de ser mais perigosa que qualquer desastre apocalíptico.
E olhe que, em O Mundo Depois de Nós, há desastres o tempo todo, e imagens assustadoras os acompanham. Veterano da televisão, Esmail está visivelmente ansioso para contar uma história mais cinematográfica (ainda que ela esteja acorrentada à Netflix), e se apoiando nos movimentos de câmera mais criativos desde Quarto do Pânico, ele transforma a casa onde as famílias se abrigam num ambiente vivo e dinâmico, onde enquadramentos são constantemente desequilibrados e entortados para que ninguém fique confortável demais.
Fora daquelas paredes, Esmail adota um olhar Spielbergiano, tão interessado na reação das pessoas ao extraordinário quanto no evento em si. O diretor nem sempre encontra o contracampo ideal para os campos que preenche com closes de olhos arregalados, muitas vezes falhando em comunicar a grandeza ou perigo do elemento misterioso, mas quando consegue (em especial numa ida à rodovia envolvendo Teslas), O Mundo Depois de Nós ganha o ar de terror digno de um fim do mundo destes.
Essa sensação nunca é maior do que no final do filme, quando recebemos as últimas informações necessárias para entender tanto o tema buscado por Esmail quanto as causas dessas tragédias. Fãs do livro podem ficar frustrados com o grau expositivo do roteiro e, de novo, o argumento fica óbvio bem cedo, mas é difícil não se sentir assombrado pelo quão palpável este apocalipse é. Os ingredientes sociais necessários para trazê-lo já existem. Os dominós já estão enfileirados. Basta o peteleco.
O Mundo Depois de Nós não tem coragem suficiente de se entregar à negatividade dessa realidade, deixando ainda um arzinho de "se nos juntarmos, podemos sobreviver" que dilui um pouco o impacto da proposta, mas não o suficiente para que saiamos do filme com outra sensação, se não a de inevitabilidade. Esse apocalipse já começou.