Oh Canada faz do cinema um confessionário para Jacob Elordi e Richard Gere

Oh Canada faz do cinema um confessionário para Jacob Elordi e Richard Gere

Paul Schrader sempre usou o cinema para se abrir, agora ele fez um filme sobre isso

Guilherme Jacobs
18 de maio de 2024 - 7 min leitura
Crítica

Desde seu primeiro grande trabalho, o roteiro de Taxi Driver, Paul Schrader usa o cinema como confessionário. É ali que ele confronta suas trevas. Das tendências violentas de Travis Bickle até questões sexuais e religiosas, além de vícios e cicatrizes inescapáveis vistos nos muitos seus melhores longas como diretor, como Mishima, Gigolô Americano, Fé Corrompida e, agora, Oh, Canada. Só que este último traz uma camada a mais de metalinguagem. Ao contar a história de um documentarista no final de sua vida, Schrader reflete precisamente sobre o que sempre fez. Como é viver, e morrer, quando a chave para destravar seu interior é uma câmera e um microfone?

Oh, Canada inicia com uma sequência de abertura cautelosa. Nela, vemos um casal de cineastas — alunos do protagonista Leonard Fife interpretado por Jacob Elordi, na juventude, e Richard Gere, da meia idade em diante — preparando o terreno para o derramar da alma do personagem central de seu novo filme ao posicionar luzes, microfones e câmeras para rodar um documentário biográfico com o intuito celebrar os feitos de seu mestre antes que o câncer o leve.

Fife ficou famoso por fugir do recrutamento para a guerra do Vietnã e buscou refúgio no Canadá, onde começou a carreira. Agora diante da morte, ele quer usar essa entrevista para revelar as mentiras e pecados deixados no caminho, inclusive para sua terceira esposa, Emma (Uma Thurman), para quem ele faz questão de ficar olhando enquanto ignora as perguntas de Diana (Victoria Hill) e Malcom (Michael Imperioli) e faz longos, e por vezes confusos, monólogos sobre as mulheres abandonadas, filhos rejeitados e amores perdidos.

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"Nada disso é inventado, mesmo que pareça inventado enquanto eu falo," Fife insiste, com uma vulnerabilidade poucas vezes vistas em galãs como Gere, cuja primeira aparição no filme — deitado, com cabelo ralo e rosto inchado — trará imediatamente à mente o rosto de Schrader. O quão confiável Fife é como narrador nunca fica claro, particularmente porque a estrutura de Oh, Canada é tão confusa quanto a memória do personagem. Schrader dispensa seu já conhecido uso de um diário para dar voz aos pensamentos do protagonista em favor de utilizar a entrevista como uma de três narrações diferentes (há outra com Fife e uma terceira com seu filho Cornell, vivido por Zach Shaffer). Há trocas de lentes e aspectos. Cenas em preto-e-branco em cores. Gere aparece em cenas onde Elordi deveria estar, e depois é trocado pelo jovem galã. Assim vamos.

O quão proposital isso é, talvez para encenar a dificuldade de revisitar memórias antigas quando a mente já está cansada ou para demonstrar como pessoas que vivem no meio de suas criações podem misturar ficção e realidade até perder o limite entre elas, não está claro. Assim como seu colega de Nova Hollywood, Francis Ford Coppola, em seu filme selecionado para o Festival de Cannes 2024, Schrader insere uma tonelada de ideias em sua obra mais recente, e seu rigor técnico nem sempre acompanha essa inundação.

Mas de momento a momento, Oh, Canada nos captura. Para além da sua capacidade formal de compor imagens e manter bem o ritmo durante os breves, mas significativos, 95 minutos de filme, Schrader encontra dois ótimos colaboradores em Gere e Elordi. Enquanto o astro de Euphoria e Saltburn encarna bem a arrogância da juventude, claramente construída como uma muralha imperfeita para esconder as inseguranças de Fife, o veterano é, repetidamente, colocado em situações sem qualquer glamour, e faz de cada uma um baque para o coração. Visto dentro do contexto de Gigolô Americano, onde Schrader fez de Gere um sex icon, sua nova colaboração demonstra uma disposição enorme por parte da dupla para inserir fragilidade onde antes havia certeza.

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O mesmo pode ser dito sobre Fife. Ele insiste ter construído seu sucesso na base de uma mentira, e por mais que a montagem um tanto quanto bagunçada de Oh, Canada dificulte o entendimento de quando tal mentira foi contada, e até o que exatamente foi a mentira, a dor imposta por Schrader e Gere nos testemunhos do personagem conectam todas as peças num nível emocional. Fica claro que houve várias mentiras e vários erros. Naturalmente, há várias consequências. O filme, por intenção e por erro, nem sempre comunica com clareza a realidade dos acontecimentos, mas a dos sentimentos? Essa está sempre palpável. O arrependimento, a vergonha, a raiva. Schrader encontra em Oh, Canada o veículo perfeito para expressar tudo isso, e Gere é a estrada por onde ele vai.

Em particular, o filme comenta e representa a aparente contradição de viver se abrindo através do cinema, e apenas no cinema. Como pode uma arte na qual a construção da fantasia é tão bem-vinda falar tantas verdades sobre os artistas, e o que isso nos diz sobre eles? Homens como Schrader, que só se expressam em postagens que beiram o inapropriado no Facebook ou em filmes recheados de culpa, homens como Fife, homens como Gere. Eles constantemente refletem sobre si mesmos através do que fazem. Oh, Canada acertadamente reconhece isso como egocentrismo. É muito conveniente contar sua narrativa quando você a controla.

Mas eventualmente, talvez quando a morte esteja na esquina, é preciso deixar os artifícios de lado. Talvez seja por isso que, na sua recente trilogia de homens solitários e agora em Oh, Canada, Schrader esteja sendo tão honesto. Como já disse, Schrader sempre viu seus filmes como um meio de confessar. Olhar para sua filmografia é encontrar verdades em meio ao fictício, mas agora, mais velho, ele parece pronto para admitir mais uma coisa: seja fato ou mentira, nada disso foi inventado.

Nota da Crítica
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Guilherme Jacobs

Oh, Canada

1h 35min | 2024
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