One Piece é, enfim, uma adaptação de anime em que a Netflix acerta
Produção milionária do serviço de streaming sabe capturar a alma da obra de Eiichiro Oda
Crítica
Depois de várias tentativas, a Netflix enfim conseguiu: One Piece é um live-action ocidental de anime digno de respeito.
Há muitas maneiras nas quais a adaptação acerta. Da teatralidade das performances às coreografias de ação, passando pelos rios de dinheiro gastos com sets de navios e um uso surpreendentemente simples de computação gráfica.
Mas sua maior conquista é saber condensar a essência da obra de Eiichiro Oda, que trabalha os conceitos do shounen — o companheirismo, a amizade e a perseverança dos personagens que unem One Piece a Dragon Ball, Naruto e os demais animes e mangás produzido para o público jovem masculino do Japão — com uma história que põe sonhos de liberdade à prova em mundo autoritário.
Em One Piece, acompanhamos Luffy (Iñaki Godoy), um jovem cujo maior sonho é encontrar o tesouro One Piece, que pertencia ao último rei dos piratas, Gol D. Roger (Michael Dorman). Em sua execução pública, o pirata anunciou que o tesouro seria de quem o encontrasse. Suas palavras deram início a uma era de ouro da pirataria, onde multidões se lançaram em busca de riquezas na perigosa Grand Line, uma faixa de mar localizada na linha equatorial do planeta.
Na primeira temporada, entretanto, vemos apenas a preparação de Luffy e seu grupo para chegar à Grand Line, adaptando a saga introdutória, East Blue, que ocupa os primeiros 50 episódios do anime. Aqui está o primeiro feito da série da Netflix, que consegue acomodar os principais acontecimentos da saga em apenas oito capítulos de cerca de uma hora.
Há, claro, concessões e muitos cortes, mas, no geral, os episódios conseguem apresentar não apenas Luffy, como os integrantes de seu grupo — Zoro (Mackenyu), Nami (Emily Rudd), Usopp (Jacob Gibson) e Sanji (Taz Skylar) — com propriedade, revelando suas aspirações, as histórias trágicas de seus passados e seus sonhos.
Tudo isso acontece sem abrir mão do tom cartunesco predominante no início do anime e do mangá. A adaptação live-action não tem medo de tingir cabelo ou vestir com roupas coloridas e chapéu de bichos até mesmo os personagens mais sérios da trama, garantindo um contraste que, a princípio, estranha até mesmo no material original, mas é fundamental para dar personalidade a este universo.
O mesmo, no entanto, não acontece com boa parte das interpretações, especialmente quando falamos dos protagonistas. Vários traços de personalidade ficam mais contidos, como por exemplo o lado mais mulherengo de Sanji, a falta de tato de Zoro ou a predisposição de Nami a sacanear quem lhe dá abertura. A única exceção é Luffy, que encontra em Iñaki Godoy o intérprete perfeito, tanto em sua empolgação juvenil ao se deparar com a próxima grande aventura, quanto a seriedade que demonstra ao ver os companheiros de bando e pessoas inocentes precisando de ajuda. Godoy, assim como o personagem que interpreta, é a alma de One Piece, e a maneira como ele conduz os acontecimentos com imprevisibilidade é o que faz a adaptação funcionar tão bem.
Tudo isso é embalado por uma produção de primeira. Em Hollywood, retratar o alto-mar nas telonas é sinônimo de despejar dinheiro em cada episódio, e o orçamento polpudo da Netflix é evidente, mas fica os elogios para a maneira eficiente com que esse dinheiro foi gasto.
A dinâmica de One Piece consiste nas viagens de Luffy e seu bando por diversas ilhas e cenários extremamente distintos entre si, e é visível como vários destes sets foram construídos de verdade, do emblemático navio Going Merry ao restaurante aquático Baratie, o que fez toda a diferença, especialmente nas cenas de ação. É óbvio que muito da produção é feito com computação gráfica, mas ela é bem disfarçada de modo a não se sobressair.
O mesmo acontece com os efeitos especiais nas batalhas, já que o poder de Luffy vem justamente por comer uma fruta que lhe permite esticar o corpo — e há vários outros personagens que ganham habilidades diferentes da mesma forma. O uso de CG nas lutas é surpreendentemente comedido na primeira temporada, mas aparece quando precisa de uma forma eficaz.
Há muitos anos, a Netflix vem tentando se consolidar como uma produtora de adaptações de anime, um dos terrenos mais delicados e recheados de insucesso em Hollywood. No entanto, o serviço de streaming finalmente pode dizer que conseguiu, com escolhas criativas corretas e uma produção competente. Pode até ser que o live-action de One Piece não tenha tantos fãs quanto a aclamada obra original, mas, certamente, deve ditar o padrão para o futuro deste tipo de obra daqui para frente.