Dias Perfeitos de Wim Wenders encontra beleza nas coisas mais ordinárias da vida
Em seu espetacular drama em Tóquio, diretor de Paris, Texas faz belo ensaio sobre o cotidiano
Crítica
Em seu seminal discurso “This is Water” dado aos formandos do Kenyon College em 2009, David Foster Wallace argumentou que devemos abrir os olhos para as belezas da vida comum ao nosso redor. Como um peixe finalmente percebendo a água à sua volta, o escritor de “Graça Infinita” nos convida a perceber o valor inerente às situações mais banais da humanidade. Fazer isso, ele explicou, é uma escolha. Temos participação ativa na decisão de parar e procurar os raios de sol entre as árvores. É fácil traçar paralelos entre a filosofia exposta naquela formatura e o excelente drama corriqueiro Dias Perfeitos, do lendário diretor Wim Wenders.
Não acontece nada extraordinário nas duas semanas da vida do Sr. Hirayama (Koji Yakusho) vistas em Dias Perfeitos. Com estilo de vida humilde e idade avançada o suficiente para confundir o Spotify com uma loja, o Sr. Hirayama é um limpador de banheiros públicos em Tóquio com uma rotina tão precisa quanto a execução de seu trabalho. Todo dia, ele acorda com o barulho de uma vizinha varrendo a rua, água suas plantas, compra um café enlatado na maquininha da rua e, sem antes olhar para o céu e sorrir, parte em direção a uma das profissões mais facilmente desrespeitadas e ignoradas da sociedade moderna. Lá, ele transforma a limpeza em sua arte. Entre coletar lixo e tirar manchas de espelhos, este homem de pouquíssimas palavras encontra satisfação.
Essa rotina inquebrável inclui, também, uma pausa para o almoço num parque local, onde Hirayama tira fotos para revelar em sua câmera, antiga como as fitas cassetes guardadas em sua velha vã — uma invejável (e valiosa, descobriremos) coleção com hits de The Velvet Underground, Nina Simone e Lou Reed, e outros. Episódios inesperados como a visita de uma sobrinha, a demissão de um subordinado e uma criança perdida podem até mudar seus horários, mas Dias Perfeitos nunca coloca seu protagonista em algo “digno de cinema.” Nessa normalidade, Wenders encontra singelas e silenciosas formas de direcionar nosso olhar para os espetáculos triviais de uma vida bem-vivida.
Filmado, como Wenders revelou no Festival de Cannes, inteiramente com câmera na mão — graças ao tripé-humano e lendário diretor de fotografia Franz Lustig, capaz encontrar poesia em todo canto da metrópole japonesa — Dias Perfeitos se propõe a espelhar a atitude de seu personagem principal. Assim como temos vislumbres de quem Sr. Hirayama era antes de o conhecermos, de quem é sua família e de porque ele escolheu esse caminho, o filme é polvilhado com gotinhas do excepcional através das composições graciosas do diretor mais bem-sucedido em dramatizar, entre outras coisas, viagens de carro (veja: Paris, Texas). A comuta de Hirayama, ao som de “Feeling Good” ou “Perfect Day” (não podia faltar), e pelos olhos de Wenders, é de prender a respiração.
Estes momentos, contudo, jamais transformam Dias Perfeitos em um melodrama, polemizam os acontecimentos diários ou deixam excêntricos os relacionamentos trazidos à vida pelo ótimo elenco formado por Arisa Nakano, Tokio Emoto, Sayuri Ishikawa, Tomokazu Miura, Aoi Yamada e outros. O roteiro de Wenders e Takuma Takasaki insiste na normalidade. Se em outros filmes, situações como o dia em que a van de Hirayama fica sem gasolina no meio de um viaduto, ou o reencontro com uma parente distante, poderiam ser minadas para algo mais emocional, Dias Perfeitos prefere sempre amenizar. O resultado é curioso. Rapidamente entramos no ritmo do longa, entendemos seus processos e sincronizamos com seus passos. Então, como Hirayama, passamos a desejar a repetição e o ordinário.
O efeito é tanto que acaba se voltando contra o próprio Wenders no terceiro ato. Talvez num esforço de oferecer uma conclusão com mais impacto, ele cai no sentimentalismo ao tentar roubar lágrimas de sua audiência. No meio de um filme com desenrolar tão natural, sentimos o puxar das cordas. Na trama em questão, o diretor prepara uma interação específica para Hirayama com a intenção de deixar bem claro suas ideias e temas, expressando de forma literal o que já era tão bem comunicado, em especial pela atuação magnética de Yakusho.
Seu rosto é complexo o suficiente para muitas vezes dispensar inteiramente o abrir da boca. Intenso nas tarefas mas com olhar inquisitivo para os pequenos e efêmeros encantos existentes na passagem da luz por uma folha* ou no abraço de um mendigo em um tronco, Hiroyama consegue dizer tudo com uma mudança de feição ou gesto significativo graças à forma como Yakusho habita cada segundo deste papel.
*Dias Perfeitos tem uma “cena pós-créditos.” Nela, Wenders coloca em tela o termo Komorebi, a palavra japonesa para a luz solar vista unicamente entre os galhos e folhas de árvores.
Ele é dedicado no lavar de uma pia e ao derramar uma lágrima. Sua performance é total. Aliando a timidez de alguém com cicatrizes com o deslumbramento de quem vê valor na mídia analógica, numa boa refeição e ouvindo uma música (é raro ver alguém atuar tão bem escutando), o Hiroyama de Yakusho é uma figura completa, independente de quão pouca informação tenhamos sobre seu passado, medos e desejos.
Afinal, esse é o argumento d eDias Perfeitos. Wenders e companhia embarcam na missão de mostrar-nos o quanto o dia de uma pessoa pode ser repleto do belo quando paramos para observá-lo. Inúmeros filmes buscam mostrar a vida de pessoas comuns, mas poucos se comprometem tanto a aliar os aspectos corriqueiros de sua narrativa com uma execução enfatizando exatamente essa natureza trivial. Ao fazê-lo, Dias Perfeitos chama nossa atenção para quantos eventos singulares cruzam o caminho de Sr. Hirayama (e, certamente, o nosso) num período de 24 horas. Ocasiões ruins, ocasiões boas, ocasiões fáceis de perder. Ocasiões que, por outro lado, deixam os dias perfeitos.
Crítica escrita em 26 de maio de 2023 no Festival de Cannes. Dias Perfeitos será lançado no Brasil em 29 de fevereiro de 2024.