Pobres Criaturas mistura Frankestein e Barbie em conto de fadas encantador
Yorgos Lanthimos aposta no surrealismo e atuações impecáveis para falar de patriarcado e amadurecimento
Crítica
Os rostos conhecidos de Pobres Criaturas podem enganar o espectador mais desavisado. Emma Stone e Mark Ruffalo, figuras carimbadas em blockbusters de Hollywood, trazem consigo a expectativa de um filme mais convencional, algo que não existe na carreira de Yorgos Lanthimos, diretor de O Lagosta, A Favorita e O Sacrifício do Cervo Sagrado. Agora, num conto surrealista que mistura Frankenstein e Barbie, o grego faz uma comédia fantasiosa que aborda com acidez e visual inebriante a jornada de uma mulher em busca da própria independência e entendimento individual.
O roteiro de Tony McNamara, baseado no livro homônimo de Alasdair Gray, conta a história de Belle (Stone), uma moça que é ressuscitada pelo excêntrico cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe) a partir do implante de um cérebro de um bebê, e que viaja para conhecer o mundo com um advogado de índole duvidosa (Ruffalo). A narrativa inteira se baseia em capítulos que nomeiam locais ao redor do globo, mas também os passos que a protagonista dá em direção à compreensão do seu papel na sociedade, que mesmo sendo uma caricatura discute questões inerentes ao mundo real.
Lanthimos extrapola qualquer ideia de surrealismo que apresentou em seus trabalhos anteriores e, talvez devido à comédia mais escrachada do material base, consegue fazê-lo sem a empáfia que por vezes insistia em tropeçar. Enquanto o texto de McNamara ajuda a pontuar cada personalidade com piadas intragáveis, a fotografia de Robbie Ryan (de A Favorita) é usada para deixar claro os contornos de ironia e incômodo que Lanthimos traz no discurso.
As cidades imaginárias de Lisboa, Alexandria, Paris e Londres acompanham esta toada fascinante do conto de fadas de Pobres Criaturas. Todas com seus traços personalizados, mas nunca expostos de uma forma didática a ponto de tirar o foco da jornada de Belle, que apesar de se encantar com cada esquina, segue firme nos ombros de Stone como um farol de inocência e empatia para o espectador. Belle é uma jovem em processo de descoberta, mas ao mesmo tempo um lembrete da força do ambiente, do meio e das influências que a cercam, sem deixar de lado o impacto que a criação tem no comportamento de um indivíduo.
Ao lado de Stone, Ruffalo e Dafoe personificam com talento ímpar o traço fútil, genial e controlador do homem no texto de McNamara. Criaturas chegar no mesmo ano de Barbie é curioso, já que o filme de Greta Gerwig toca em temas semelhantes e também o faz de forma fantasiosa. A diferença, porém, está na abordagem cômica escolhida. Enquanto o filme da Mattel vai pelo lado mais sarcástico e passivo-agressivo, Lanthimos decide usar o sexo e ironia como motores da transformação de Belle e do quadro do filme como um todo, o que acaba denotando uma abordagem mais madura para o tema.
Em ambos os casos, é de se louvar o desempenho exemplar do elenco, que encarna o papel de personagens fantásticos sem deixá-los com os pés fora do terreno das ideias que discutem. E ainda que não possua a grandeza comercial de Barbie, Pobres Criaturas é um feito por não se envergonhar dos aspectos lúdicos e exageros visuais que escolhe para debater temas atemporais e cada vez mais relevantes na sociedade contemporânea. Como diria Martin Scorsese, isso é (absolutamente) cinema.
Crítica escrita originalmente em 8 de janeiro de 2024.