Retratos Fantasmas celebra e retrata a história do Recife através de seus cinemas
Meio documentário, meio ensaio visual e meio viagem no tempo, filme de Kleber Mendonça Filho é uma ode à sua cidade natal
Crítica
Foi como voltar pra casa. Eu e Kleber Mendonça Filho viajamos mais de 7 mil quilômetros para ir de Recife a Cannes. Eu para assistir e ele para lançar seu novo filme, o ensaio-documentário Retratos Fantasmas, que usa os cinemas da capital pernambucana para falar sobre as mudanças na cidade, sobre o povo e sobre o próprio Kleber. Tão distante das ruas onde cresci e ainda moro, fui transportado de volta para o Setúbal, para o Recife Antigo e para o Cinema São Luiz por meio de um longa-metragem cuja natureza é essa. Um transporte.
Entendendo cinema como exercício de memória — um registro do tempo passado e dos vultos agora esquecidos — Retratos Fantasmas começa com um segmento no apartamento da mãe de Kleber, onde o cineasta morou e filmou diversos projetos, para nos introduzir à ideia de uma conexão visceral entre a arte cinematográfica e a crônica de um ambiente. Como ele mudou? O que surgiu nele? Quem passou por ali? Como eram seus arredores? Poético e reflexivo em sua narração, o diretor de Bacurau e Aquarius traça paralelos entre modificações estruturais e pessoais, usando o cinema como ponte entre essas duas vias. Assim, Retratos Fantasmas logo se apresenta como o filme mais pessoal do diretor. Por isso, acho justo que essa seja minha crítica mais pessoal.
Toda crítica é pessoal. Todos nós trazemos nossos gostos, experiências e personalidade para a sala de cinema quando entramos, e para o teclado quando precisamos digitar nossa opinião. Da forma mais honesta possível, lidamos com expectativa, resultado, preferência e interpretação. Falar de Retratos Fantasmas, porém, me força a escrever num grau mais vulnerável de transparência. Essa é, afinal, a minha cidade.
É onde ainda vivo, ainda trabalho e ainda vou aos cinemas. Atualmente, não vou para nenhum que fique na rua*. Como o filme de Kleber relata, todos fecharam permanentemente com a exceção do lendário e imponente Cinema São Luiz, que continua com a frase "em breve estaremos juntos" em sua fachada. Quando, aliás, a foto da inauguração do São Luiz em setembro de 1952 com Falcão dos Mares, pensei no avô que perdi há anos, e que esteve naquela sessão. Comecei a chorar.
*A não ser que consideremos as Salas da Fundação Joaquim Nabuco como cinema de rua. Meus leitores recifenses, o que acham? Me respondam aqui.
"É muita história", Kleber narra durante o segundo segmento, antes de partir para o capítulo final dedicado ao São Luiz e a outros templos da cidade. No Ato II, ele nos leva por um passeio pelas décadas do Cinema Veneza, do Art Palácio, do Trianon, e de outras salas agora infelizmente fechadas. Conhecemos projecionistas e entusiastas, colecionamos depoimentos e imagens, e no processo testemunhamos como o registro gravado de outras épocas, particularmente quando centrado em lugares agora inexistentes, de fato passa a ter um quê sobrenatural. Como pessoas e animais falecidos revivendo através de uma fita VHS antiga, Retratos Fantasmas traz de volta à vida prédios históricos, tanto por sua idade quanto, como diria Kleber, porque muita história rolou ali.
Neste capítulo dois, percebemos como tanto em sua produção quanto na reprodução, a arte se torna associada aos lugares onde cada uma acontece, e passa a refletir as maneiras como tais bairros, ruas e cidades ganharam novos tons. No caso de Recife, a riqueza foi pra outra zona, os grandes edifícios foram erguidos por toda parte, e como a última cena de Retratos Fantasmas deixa claro, há farmácias para todo lado. Pergunte para qualquer recifense. Em toda esquina tem uma. Será isso um sintoma de uma metrópole doente?
A cena das farmácias fecha o terceiro bloco, que começa com o "templo" do São Luiz, passa pelas Assembleias de Deus agora presentes onde antes estavam os cinemas, e alcança o ápice numa conversa divertida com um motorista de Uber que supostamente é capaz de se tornar invisível. O momento é genuinamente hilário, mas também serve para pontuar os temas de Retratos Fantasmas: o desaparecimento de rostos, e como nos comunicamos com eles agora. O foco nas igrejas também se encaixa nisso. Se filmes se tornam um meio de revisitar coisas levadas pelo tempo, seja pela morte ou pela demolição, então porque não falar dos cultos onde as pessoas buscam exatamente a conexão com o transcendente?
Parece ser o caso, porque assistir a Retratos Fantasmas e ter a chance de celebrar Recife no maior festival de cinema do mundo foi uma experiência única. Reconhecer as esquinas por onde já andei, ouvir o sotaque com o qual falo, as expressões comuns em minhas conversas e entrar nas salas onde minha cidade se confunde com minha paixão é algo tão idiossincrático que é até encontrar as palavras certas. Sobrenatural vem à mente. Gratidão também. É muita história mesmo, e com Retratos Fantasmas, Recife ganha um lindo documento colecionando algumas delas.
Esta crítica foi originalmente publicada em 19 de maio no Festival de Cannes, na França.