
Samurai de Olhos Azuis usa originalidade afiada para cortar através de expectativas
Série animada para maiores combina uma espetacular direção de arte com narrativa inesperada

Crítica
Por conta do infame algoritmo, é comum receber os mesmos tipos de produções vindas da Netflix. Afinal de contas, para garantir a constante visualização de seus títulos, o streamer tem o incentivo de produzir coisas com as quais as pessoas estejam familiarizadas, e talvez por isso Samurai de Olhos Azuis precise de uma espada tão afiada para cortar através de tanto ruído e chegar em alguém como eu, que tipicamente não acompanha séries animadas de lá.
Bom, para quem devora filmes de Akira Kurosawa e gastou horas em Ghost of Tsushima, a palavra samurai no título é normalmente suficiente para chamar atenção, e trazer com si uma série de expectativas que inevitavelmente acompanham uma história inserida nesse gênero tão conhecido. É o que a animação criada por Michael Green (Logan, Blade Runner 2049) e Amber Noizumi faz com tudo isso que deixa Samurai de Olhos Azuis tão fascinante e especial. Começa com a continuação da chamada. "Olhos Azuis." O termo vem da característica mais marcante de Mizu (Maya Erskine), protagonista da trama, e incita a curiosidade exatamente pela estranheza de sua presença em meio a algo aparentemente tão japonês.
O estilo de arte da série, um "2.5D" trazido à vida pelo estúdio franco-canadense Blue Spirit, evoca fantoches Bunraku no design de personagens e as pinturas de estilo ukiyo-e na coloração e textura do mundo ao seu redor, dando a Samurai de Olhos Azuis um aspecto tradicional em sua realização do período Edo, no meio do século XVII. Branco, vermelho e laranja povoam os cenários por onde Mizu navega em busca de vingança contra um grupo peculiar de homens, e azul é o pigmento através do qual encontramos a originalidade.
Na narrativa, os olhos turquesa de Mizu significam impureza. Na época, quando estrangeiros foram totalmente banidos do Japão, crianças nascidas com características como essas — marcas do cruzamento "sujo" de um branco e uma japonesa — eram vistas como animais sujos. Desde sua infância, Mizu sofreu com esse tipo de tratamento, encarando bulllying, isolamento e a morte de sua mãe. Felizmente, um ferreiro cego, famoso por criar as melhores lâminas da região, acolheu a Mizu, e assim começa a criação de uma lenda.
Samurai de Olhos Azuis traça esse caminho de maneira inesperada e empolgante. A imprevisibilidade vem da maturidade com a qual os temas e acontecimentos são tratados, e assim como a disposição da animação para violência, nudez e sexo, enquanto a diversão, para ser bem honesto, vem da adrenalina pura de ver uma katana cortando um braço da maneira mais bonita possível. Se praticamente todo frame de Samurai de Olhos Azuis parece uma pintura, então suas lutas são obras dignas de um museu.
Se isso foi suficiente para te convencer a dar uma chance, então essa é a hora de parar de ler. Não vou entrar em spoilers do final, do destino de personagem ou coisas do tipo, mas é preciso falar sobre a revelação dada no fim do primeiro episódio. Não é nada chocante, nem algo muito escondido pela série, e qualquer pessoa prestando atenção no elenco terá percebido isso. Mas eu já recebi reclamações suficientes de pessoas sensíveis a qualquer informação não dada em trailers (e até em trailers!) para saber que é bom ter cautela. O texto continua depois do vídeo.
O fato de que Mizu é uma mulher não é exatamente guardado a sete chaves pela série, que telegrafa essa "reviravolta" ao longo da primeira hora antes de confirmá-la com uma belíssima e ousada cena dela nua, molhada e envolta em vapor após um banho quente na natureza fria. O gênero da samurai não é apenas um detalhe jogado no roteiro para ganhar pontos progressistas ou só diferenciar-se de outras narrativas, e sim algo intrínseco à temática da série de exclusão social, e do quão difícil é sair das cadeias impostas pelo país na época. Da relação de Mizu com homens até sua visão do próprio corpo, Green, Noizumi e seus colaboradores encaram a feminilidade da personagem de maneira honesta e refrescante, nunca se escondendo das dinâmicas que a escolha apresenta, e sim usando-a como matéria prima para forjar sua criação.
Pinta-se, literal e figurativamente, uma figura tridimensional de Mizu, e o mesmo é feito com vários coadjuvantes. As jornadas de seu aprendiz Ringo (Masi Oka) e do seu rival Taigen (Darren Barnet) são desenvolvidas com essa mesma bem-vinda mistura de particularidades e humanidade. Passamos a esperar um padrão que Samurai de Olhos Azuis nem sempre mantém, o arco genérico de Akemi (Brenda Song) e alguns flashbacks conectando Mizu com vilões pouco fazem para desafiar estruturas, mas que ecoa nos melhores episódios da primeira temporada.
Armado com isso, o roteiro progride em um ritmo agradável e ágil. Samurai de Olhos Azuis surgiu de uma ideia que Noizumi teve observando os olhos de sua própria filha, e em entrevista ao Indiewire, ela disse que, antes dessa experiência, acreditava que o uso de personagens numa animação seria igual ao de um live-action, só que em outro meio. A produção, porém, lhe revelou a necessidade de ser intencional em sua arte. Até pela limitação de recursos que infelizmente acompanha esse tipo de trabalho, é preciso aproveitar bem cada segundo.
Ela e Green o fazem movendo a história para frente, apresentando novos elementos e concluindo arcos em cada capítulo. Tal qual um bom samurai num duelo mortal, a série não desperdiça movimentos ou gasta tempo com distrações, mas ao mesmo tempo, insere beleza e estética nos golpes e posturas. Em outras palavras, há uma clara intenção aqui.

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