Sem Coração transforma a praia alagoana num lugar de vida e morte
Dirigido por Nara Normande e Tião, filme traça o amadurecimento junto com a morte da infância
Crítica
A praia é um lugar de vida e morte em Sem Coração, o belo e atmosférico longa-metragem de Nara Normande e Tiãoque representou o Brasil no Festival de Veneza deste ano. A visão de personagens emergindo entre as ondas e puxando ar sugere uma espécie de renascimento, usando a água salgada como fonte interminável de renovação. Chegue na areia e vá entrando no continente, porém, e o ambiente costeiro ganha um ar de morte, como uma baleia encalhada cujo coração dá suas últimas batidas.
É nesse litoral onde Tamara (Maya de Vicq) vive, brinca e se apaixona. Nascida numa casa de classe média, ela tem mais interesse em manter-se cercada de amigos sem o mesmo poder aquisitivo de sua família, preferindo passear com eles, invadindo casas vizinhas para ver fitas pornográficas (são os anos 1990), acampando em hotéis beira-mar abandonados e pulando no mar diariamente. Ela aproveita cada um desses momentos como se fosse o último, em grande parte porque sua mudança para Brasília, onde ela irá estudar e morar sem data para voltar, se aproxima.
Abastado de algumas das mais marcantes imagens do cinema nacional recente, Sem Coração traça esse período da vida da garota com nostalgia e melancolia. Em grande parte, Sem Coração é um filme de hangout, e passamos boa parte do tempo vendo Tamara conversando com o reflexivo Binho (Kaique Brito), um menino gay que sofre nas mãos de adultos locais, rindo com o engraçado Galego (Alayson Emanuel, magnético), cujo sorriso fácil esconde uma vida de crimes e abuso, e principalmente, observando atenciosa a misteriosa Sem Coração (Eduarda Samara), uma pobre menina local sobre quem há algumas lendas urbanas, mas nenhuma tão dura quanto a verdade.
Inspirado em parte na juventude da própria Normande, Sem Coração traz uma linguagem saudosa familiar em produções do tipo, quando realizadores revisitam com olhar atento e curioso os momentos definidores de sua vida. As tardes preguiçosas, brincadeiras proibidas e descobertas sexuais são todas encenadas pela direção com o ardor do desejo, mas correndo por baixo disso tudo, percebe-se um pesar. Se Tamara encara todo dia como seu último ali, segue-se que o Alagoas está, para ela, morrendo.
Se a saudade pauta essa visita ao passado, então Normande e Tião estão tão interessados na alegria da memória quanto na tristeza de saber que aquilo acabou. O maior feito de sua direção é como ela trafega entre essas duas emoções de maneira orgânica e efêmera. Sem Coração opera simultaneamente num mundo palpável, onde o jeito de falar, andar e existir denuncia o conhecimento específico de quem tem aquele lugar e aquelas pessoas inseridos em seu DNA, mas também um mundo fugaz que vira vapor quando você o deixa; como um sonho cujos detalhes são esquecidos, mas cujo sentimento permanece de maneira indescritível.
A câmera de Evgenia Alexandrova passeia pelos cenários encontrando visões dignas de devaneio, e Normande e Tião exprimem dessas composições plano após plano de beleza e humanidade. Sem Coração se desdobra de forma natural, mas Normande e Tião não parecem confiar inteiramente nessa abordagem, e conforme seu filme se aproxima da conclusão, o roteiro apela para dramas fabricados e telegrafados em busca de choque. Personagens são plantados com a clara função de inserir violência, em especial nas vidas de Binho e Galego, e alguns destinos se tornam aparentes muito antes de serem confirmados em cenas cuja articulação minuciosa parece ir contra a maré do filme.
Semelhantemente, os diretores pouco aproveitam os pais de Tamara para além do alívio cômico (no caso do pai, vivido Erom Cordeiro) e dos clichês de filme de amadurecimento (no caso da mãe, Maeve Jinkings). Se as crianças e adolescentes de Sem Coração são tridimensionais, dotadas de uma vida interior bem comunicada na atuação dos jovens, em especial de Vicq, os adultos parecem ser mais funções do que personagens. Eles também adicionam ao texto uma curiosa dinâmica de classe social que, apesar de reconhecida, nunca é bem explorada.
Lendo esse texto até aqui, você pode achar que Sem Coração, a menina titular, é uma figura terciária no longa, e de certa forma isso está de acordo com o tratamento dela pelo roteiro. Sem Coração é, conceitualmente, posicionada como co-protagonista ao lado de Tamara, e em termos de minutos em tela, isso é até honrado. Na prática, porém, seus dramas pessoais, representados em sequências de sonhos com sua mãe e com animais aquáticos, são abandonados sem resolução.
É uma pena que a excelente atuação de Samara não receba a chance de ir até o fundo da garota. Suas cenas com o pai solteiro na pesca e em casa figuram entre as melhores de toda a obra, mas sua relação com Maya, que a vê com fascínio e romance, e até mesmo sua existência naquele lugar, permanecem inacabados.
Talvez seja intencional. Afinal, Tamara vai embora de Alagoas sem descobrir todos os segredos enterrados ali, e quando Normande e Tião cortam para os créditos, ficamos no mesmo estado emocional dela. Viramos as costas para o oceano afogados nas imagens daqueles rostos, mas com a sensação de não termos mergulhado fundo o suficiente.