Star Wars Visions: Por que o curta do estúdio de Wolfwalkers merece uma série própria

Star Wars Visions: Por que o curta do estúdio de Wolfwalkers merece uma série própria

Ao subverter temas clássicos de Star Wars com "Screecher's Reach", Cartoon Saloon faz melhor episódio da série animada

Guilherme Jacobs
4 de maio de 2023 - 9 min leitura
Crítica

Dizer que um episódio de Star Wars Visions merece uma série própria rende um bom título para textos como esse, mas é algo mais comum do que parece. Boa parte dos capítulos do segundo Volume da série de antologia, composto por 9 curtas-metragens feitos por estúdios de animação do mundo todo, é claramente uma fatia de uma história maior. Temos vislumbres. Os criadores dessas narrativas claramente têm mais ideias, e em vários casos, terminamos com a vontade de continuar acompanhando aqueles personagens. Nessa temporada, "Screecher's Reach" é o melhor exemplo disso.

Animado pelo Cartoon Saloon, estúdio indicado ao Oscar de Melhor Filme Animado pelo belíssimo Wolfwalkers, "Screecher's Reach" acompanha a jovem Daal (Eva Whittaker) partindo com seus três amigos — Baython (Alex Connolly), Quinn (Noah Rafferty) e Keena (Molly McCann) — em busca de uma caverna assustadora onde, dizem as lendas, vive um fantasma. Seus colegas veem a aventura como um intervalo de seu duro trabalho num reformatório, onde suam numa linha de produção intensa, mas Daal parece sonhar com algo a mais, e de alguma forma acredita que encarar essa presença sombria vai lhe permitir deixar essa vida de sofrimento no passado. Segurando o amuleto pendurado em seu pescoço, Daal repete precisar de "força e coragem" e parte em direção ao perigo.

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É uma premissa típica de Star Wars. Troque o planeta — desenhado pelo Cartoon Saloon como um cenário de poluição cinzento que dá lugar a um mar de estrelas reluzentes quando os heróis deixam o reformatório para trás — por Tatooine e seus sóis gêmeos, e Daal poderia facilmente estar no lugar de Luke Skywalker. Quinn e Keena são mais infantis, mas o perspicaz Baython percebe o anseio da protagonista por conhecer outros mundos e lhe encoraja a aproveitar a oportunidade e não olhar pra trás.

Daal, Baython, Quinn e Keena entram na caverna. O fantasma aparece. A oportunidade surge, e traz com ela a reviravolta mais surpreendente e devastadora de Visions.

O texto abaixo contém spoilers para "Screecher's Reach," segundo episódio do Volume 2 de Star Wars Visions.

A sequência dentro da caverna reflete a abordagem folclórica do Cartoon Saloon. Assim como em Wolfwalkers e em animações anteriores, o estúdio usa a mitologia irlandesa para informar as ideias e o clima da história (aqui de forma mais indireta, claro) e a linguagem visual com a qual vemos isso tudo. O tal fantasma é primeiro apresentado como uma sombra viva, sem forma e assustadora o suficiente para justificar o medo dos personagens, que fogem enquanto o grito da assombração faz as rochas tremerem, eventualmente bloqueando a saída. Daal, porém, fica pra trás. Ela ouviu falar que o fantasma existe apenas em sua mente. Isso é um teste de coragem. Então, um Sabre de Luz vermelho se acende.

Em meio à escuridão, partida apenas pela cor de sangue da arma mais icônica de Star Wars, os berros da aparição racham o teto da caverna e Daal ganha uma rota de fuga, mas a criatura não quer deixar a menina ir embora, e ela precisa de sorte e agilidade para desviar dos ataques do sabre. Quando Daal começa a escalar em direção à segurança, o fantasma segura sua perna e prepara para aplicar um golpe fatal. Então, claro, a menina usa a Força. Daal move uma rocha pontiaguda que desmorona em cima do monstro, aparentemente derrotando-o.

A luz ilumina o interior da caverna e Daal enfim vê a verdade. Descobrimos que o fantasma né (ou, mais provavelmente, era) uma Sith, e não só ela está longe de ser um espectro, como é velha e (agora) desesperada. Os gritos, antes assustadores, agora são um pedido de socorro. Pegando o Sabre de Luz, Daal mais uma vez roga por força e coragem e encerra o sofrimento de sua inimiga. O momento é tingido com tristeza, especialmente pela expressão facial da jovem, sempre animada com muita personalidade e melancolia. Na verdade, ao mostrar Daal matando a Sith, "Screecher's Reach" confirma nossas suspeitas sobre as trevas por trás dos olhos da garota. Há algo errado aqui.

Sim, os temas de amadurecimento, de querer uma vida de aventuras e de deixar sua casa pra trás são comuns em Star Wars. "Screecher's Reach", porém, sabiamente usa essas tão conhecidas propostas para nos enganar e partir nosso coração. Quando falava de não voltar para o reformatório, Daal soava mais triste do que esperançosa, e seus atos de coragem sempre foram acompanhados de uma dose de pânico, como se ela fizesse aquilo não só para se provar, mas por que não há outra opção. Ao sair da caverna vitoriosa, mas traumatizada pelo que fez, a garota mais uma vez segura o amuleto e tudo passa a fazer sentido. Ouvimos uma voz vindo do objeto, e uma nave se aproxima.

O veículo é imaginado pelo estúdio como um anjo de Evangelion, orgânico mas alienígena. Dele, sai uma figura gigante cujo visual e voz (feita por Anjelica Huston!!!) são tão maternais quanto diabólicas. Ela é um Sith, e é ela que tem guiado Daal em sua jornada. Foi ela que prometeu uma vida melhor caso Daal passasse no teste de matar a fantasma, e é ela que, agora, oferece à garota a chance de partir. Baython, Quinn e Keena, claro, ficarão para trás.

É uma grande reviravolta. Mas mais do que surpreendente, essa decisão narrativa é avassaladora justamente por usar os clichês de Star Wars para transformar a história de Daal numa tragédia. Nos envolvemos com a menina como faríamos com qualquer outra jovem padawan, apenas para descobrir que sua vontade de conhecer a galáxia foi usada para fermentar nela medo e desespero, até que foi convencida de que seguir o Lado Sombrio é sua única saída. Quando ouvimos Baython dizendo para ela não olhar para trás antes, a frase soava como um impulso motivacional. Aqui, ele a repete — sem convicção e segurando suas emoções — e ela ganha tons de luto. Sua amiga está partindo, e embora ele não entenda ainda o peso desse momento, ele sente que aquela figura, aquela mãe, não vai deixar Daal feliz.

Talvez a própria Daal saiba disso. Se "Screecher's Reach" vai criando essa atmosfera taciturna aos poucos, a conclusão do curta-metragem transborda com emoção, chegando ao ápice quando ao entrar na nave, segurando a mão de sua nova professora, Daal faz a coisa mais poética possível. Ao finalmente garantir sua passagem para uma nova vida, a garota olha pra trás. Seu rosto é puro temor.

Eu já assisti a "Screecher's Reach" múltiplas vezes, e ver o arrependimento na face da Daal logo antes do rolar dos créditos sempre é um soco. Essa subversão da típica jornada do herói de Star Wars é usada pelo diretor Paul Young e pelos roteiristas Will Collins e Jason Tammeägi para contar o mais triste, interessante e brutal capítulo de Visions até então. Eu adoraria ter uma continuação, seja para ver mais de sua animação riquíssima em estilo e beleza, ou para, com sorte, descobrir que Daal, talvez após anos na escuridão, eventualmente ficou feliz.

Nota da Crítica
Guilherme Jacobs

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