The Batman - Crítica do Chippu
Dedicado ao Morcego dentro de Bruce Wayne, filme de Matt Reeves desenha a mais depressiva e interessante figura do Batman nos cinemas
Crítica
A simplicidade do título do novo filme do Batman a princípio causa estranheza. Depois de um punhado de encarnações nos cinemas, por que voltar para algo tão simplório como O Batman? Diversas interpretações podem surgir, mas ao assistir ao filme de Matt Reeves, o motivo da escolha fica clara: este é talvez o primeiro, e melhor filme, exclusivamente sobre o personagem.
Tradicionalmente abastado por excelentes vilões e coadjuvantes, a criação de Bob Kane e Bill Finger é daquelas que ganham força dentro do clássico arquétipo do herói de Joseph Campbell. Para ser incrível, o protagonista precisa de um vilão na mesma proporção. Tal princípio cai perfeitamente no Batman, um personagem tão adorado quanto seus adversários.
O problema, ou simples fato, é que o Morcego dificilmente tem os holofotes só para si nos seus longas-metragens. Reeves muda isso com um filme de investigação noir na essência: protagonista perturbado, atmosfera de mistério, coadjuvantes encantadores e um senso de justiça e vingança que se espalha pelas cenas a ponto de abraçar a audiência na jornada daquele herói.
O Batman de Matt Reeves é único não somente por essa abordagem, mas por fazê-la funcionar no equilíbrio entre adaptação e exercício de gênero, deixando o personagem se transformar ao passo que apresenta uma Gotham tão encantadora quanto a de Tim Burton e um conflito tão impactante quanto o de Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan.
Um filme do Batman
Batman está nos primeiros dois anos de atividade em Gotham, e a criminalidade só piora. Suas atitudes são periféricas no combate à situação, mas a chegada do Charada (Paul Dano), um serial killer focado em grandes figuras políticas, o leva ao protagonismo nas investigações. Um resumo simples e direto do filme que dispõe algo importante para a abordagem do roteiro: Bruce Wayne inexiste. Literalmente como um Morcego, ele só funciona à noite, não consegue olhar para a luz e se incomoda com o sol. A pele pálida e a personalidade reclusa na cobertura da Torre Wayne o faz ser uma figura esquecida em Gotham, que começa a prestar a atenção na verdadeira identidade dele - a mascarada.
Reeves faz essa distinção sem muitas falas e Robert Pattinson domina cada comando do diretor. Wayne é curvo e esconde os olhos nos cabelos, enquanto Batman fala pelos olhos e pelo impacto do caminhar pesado de sua armadura. A loucura do personagem, além de transparecer nos básicos diálogos de sacrifício, está nas atitudes. Ao ir de frente a tiroteios, se jogar de um prédio ou simplesmente tentar se matar para salvar alguém. Na verdade, o Batman de Pattinson tenta se matar o filme inteiro, indiretamente deixando claro que não há salvação nem pra ele, nem pra Gotham. É como se o capuz fosse a droga de Wayne, algo que ele se encontra, se liberta, mas ao mesmo tempo degrada a personalidade em doses cavalares, o tornando um maníaco por violência, vingança e combate. E tal qual nos clássicos quadrinhos, a redenção não está nos próprios princípios, estes explorados pelos vilões, mas nas pessoas ao seu redor, uma luz onde só há sombra. Aqui, eles são Jim Gordon (Jeffrey Wright) e Selina Kyle (Zoë Kravitz), a Mulher-Gato.
O elenco de apoio
Gordon é a metade corporativa e menos impetuosa do protagonista. Confiante nos conceitos que o norteiam, o tenente carrega a inocência do policial existindo numa corporação corrupta e incrédula quanto à possibilidade de um vigilante resolver os problemas que a colocaram como raiz de um sistema em frangalhos. Curiosamente, a química dele com Batman é pautada pelo interesse na resolução dos mistérios e na clara incapacidade de ler tais enigmas como detetives de primeira linha. O sistema não é só mais forte, como mais inteligente que ambos. Em outras palavras, a dupla erra mais do que acerta e é uma peça manipulada de forma bem simples pelo Charada.
Selina, por outro lado, é o sopro de consciência que Bruce nunca teve. Focado em se vingar, o personagem é cego por justiça e carece de qualquer humanidade, ainda que entenda de forma muito simples e óbvia que, como o símbolo, ele não pode matar. No papel da Mulher-Gato, Kravitz entrega com perfeição a ideia de sensualidade, fragilidade e força que a anti-heroína necessita - moldando, simultaneamente, perfeitamente a jornada de descobrimento do Batman, que vê nela uma fagulha de afeto grande demais para seu capuz. Ele, obcecado em proteger, jura que qualquer um necessita de sua força, quando na verdade ele precisa aprender com seus pares. Selina e Gordon, ambos escritos e vividos na medida certa para os papéis que precisam ter para compor a jornada maior.
Os vilões de Gotham
Outra dupla composta por The Batman com primor é Charada e Pinguim. Um impecável Colin Farrell molda o mafioso deformado em ascensão, desafiando o Batman a entender a própria insignificância dentro do sistema. O jeito bufão e caricato combina tão bem com a atmosfera proposta que o personagem se torna uma extensão de Gotham, uma cidade deformada pelo crime, elegante na superfície, mas cheia de segredos e conspirações degradantes. Trazendo isso à tona está o Charada de Paul Dano, tão apaixonado pelas sombras quanto o Cruzado Encapuzado, mas menos afeito à violência física e muito mais inteligente.
Dano se esconde mais do que Pattinson e tem boa parte da sua atuação guiada pela narrativa de Reeves, surgindo como instrumento para cavar o passado e a hipocrisia na qual, teoricamente, o Batman se baseia. Diferente de boa parte dos outros vilões de filmes do herói, esse não tem tanto tempo de cena, não é responsável pelas melhores sequências, mas nem por isso deixa de funcionar para a trama. Agindo como acelerador, o personagem também sofre com as escolhas menos inspiradas do diretor, que no momento de reviravolta opta por soluções visuais pobres e inconsistentes com o apreço do roteiro até ali. Em suma, Reeves trabalha com reportagens em vídeo e papel para costurar o alcance dos feitos do Charada, e não abre mão disso ao fazer revelações chave para a trama, tornando o clímax muito menos eficiente do que poderia.
A atmosfera
O envolvimento geral, porém, não é abalado por essas decisões. O visual noir, com a dominância das sombras, fumaças, metal e sujeira, montam uma Gotham tão impressionante quanto aquela fantasia criada por Tim Burton em 1989. O design da produção passeia entre o medieval da Mansão e a modernidade de uma Times Square de Gotham com uma suavidade louvável onde, mesmo reconhecendo pontos-chave de outras localidades, a atmosfera imposta pela trilha memorável de Michael Giacchino e a fotografia de Greig Fraser transporta cada personagem e a audiência para aquela metrópole. Gotham não chega a ser um personagem como em Batman: O Retorno, mas definitivamente é um palco melhor do que todos os outros filmes da franquia.
Muito se deve também à forma consciente com que Reeves traduz o roteiro dele, Mattson Tomlin e Peter Craig na tela. A montagem sem pressa, dedicada aos quadros cheios de contraste, dá um tempo de respiro necessário para a investigação. Batman anda lentamente pelas cenas, Reeves foca os olhos do herói quase a todo momento, e na hora da violência não há qualquer pudor em transmitir intensidade, ainda que não haja grafismos. O impacto está nas atitudes, não no sangue. Está no ronco do Batmóvel e no tremor dos motores, não na destruição causada. Mais forte do que uma jorrada de sangue ou uma metralhadora no carro, por exemplo, são as tentativas de suicídio do Batman disfarçadas de heroísmo. Essa paciência com na hora de filmar e deixar a trama assentar, faz com que a história de Reeves, mesmo nas decisões mais duvidosas, se torne algo prazeroso de acompanhar até o final, pois não há nada que fale, haja ou apareça em The Batman sem importância.
Um filme de dor e aprendizado
O que é encantador em uma geração de filmes de heróis é a forma como eles representam diferentes momentos de público e autores. The Batman é parte deste momento, vindo depois de uma série de franquias de sucesso, faz parte de uma e aterrissa nos cinemas após uma pandemia devastar o planeta. Mais interessante ainda é que o filme impõe a si a responsabilidade de apagar completamente o que há no universo criado pela Warner nos últimos dez anos, ignorando não só a mitologia como a forma de construí-la. E além da execução de primeiro nível que Matt Reeves traz, há também um equilíbrio saudável entre a devoção ao material de origem e a assinatura dos criadores envolvidos.
The Batman não tem vergonha de admitir que é produto de seu tempo em cada esquina de Gotham. Ele referencia Jeph Loeb com O Longo Dia das Bruxas, Alan Moore com Piada Mortal, Frank Miller com Ano Um, David Fincher com Zodíaco, Coppola com Poderoso Chefão, Pakula com Todos os Homens do Presidente, Nirvana com Nevermind. Tão forte quanto cada uma dessas influências é a básica noção visual e de história que Reeves traz, e que se exemplifica nos primeiros (e emblemáticos) dez minutos, contando as dores de um herói que jura defender uma cidade quando a aterroriza se escondendo pelas sombras e atacando criminosos que são o efeito colateral de um sistema quebrado eternizada por ele mesmo. The Batman é não só o primeiro e melhor filme sobre o Batman por falar dele como herói, mas principalmente por fazê-lo entender que, na verdade, ele é o vilão da sua própria história.
4.5/5