O Sabor da Vida é um verdadeiro banquete tanto dentro, quanto fora das telas - Crítica do Chippu
Entre ótimas atuações, o filme mistura pratos belíssimos com muita emoção
Crítica
Mal há falas nos primeiros 20 minutos de O Sabor da Vida (The Pot-Au-Feu), o maravilhoso, gentil e agridoce novo filme do diretor franco-vietnamita Trần Anh Hùng. Quando alguém abre a boca, provavelmente é Eugénie (Juliette Binoche) dando rápidas instruções para suas ajudantes Violette (Galatéa Bellugi) e possível aprendiz Pauline (Bonnie Chagneau-Ravoire) enquanto prepara um verdadeiro banquete para o homem de sua vida, o crítico gastronômico Dodin Bouffant (Benoit Magimel) e seus fiéis amigos de alta classe viciados na boa alimentação.
Refogando aromáticos, marinando peixes, temperando frangos, assando bolos e criando alguns dos mais belíssimos pratos já eternizados pelo cinema, Eugénie praticamente flutua por sua cozinha. Entregando apenas a dose certa de determinação, pressa, obsessão e graça, Binoche nos revela uma mulher dedicadíssima à sua arte, preocupada em preencher os mínimos detalhes com as maiores belezas, gostos e cheiros, mas também uma mulher apaixonada, tanto por Dodin quanto pelo que faz. Longe de um chef abusivo, Eugénie é uma general inspiradora. Com um paladar avançado e talento para a área, Pauline em particular parece estar enxergando pela primeira vez na vida. Eventualmente, os pratos são servidos e nós, com a boca repleta de saliva, temos uma de duas reações. Ou agradecemos por termos comido antes da sessão, ou sentimos o estômago dar uma roncada.
Visitaremos aquela cozinha múltiplas vezes ao longo de O Sabor da Vida. Menos focado em sua história — uma comovente, mas leve, narrativa sobre Dodin, após 20 anos empregando e amando Eugénie, tentando convencê-la a finalmente se casar enquanto os dois enfrentam uma infeliz doença — e mais na missão de comunicar cozinhar e comer como atos de amor e sacrifício, Ahn Hùng dirige a câmera como se buscasse reproduzir nosso olhar. Para onde estaríamos olhando agora? Quando abaixaríamos a vista para olhar dentro de uma panela? Quando buscaríamos o rosto de Eugénie ou Violette para ver sua reação ao degustar uma sobremesa? As respostas para essas perguntas vem através do passeio encenado pelo diretor, que com a ajuda do chef Pierre Gagnaire, responsável por preparar as comidas, coloca diante de nós a mais pornográfica exibição culinária imaginável.
O que separa O Sabor da Vida de um Tiktoker cujos pratos são esteticamente impressionantes, porém, é o grau de carinho transmitido em cada ato desses personagens enquanto preparam e provam esses belíssimos alimentos. Numa sequência posterior, quando Eugénie se sente indisposta, é Dodin quem assume o fogão. Com a ajuda indispensável do olhar romântico de Magimel, acreditamos fielmente quando Dodin diz ficar feliz só de ver sua amada comendo diante de si.
Dodin e Eugénie estão longe de serem personagens complexos, e o roteiro de Ahn Húng, poderia facilmente murchar se não estivesse nas mãos de intérpretes tão competentes. Binoche e Magimel, porém, são perfeitos. Um casal mais íntimo do que muitos maridos e mulheres, os dois compartilham a criação de menus e noites de paixão há décadas, mas enfim decidem assumir uma aliança mais definitiva. É fato que o drama do filme, muitas vezes envolvendo convites para jantar com príncipes, é levíssimo, mas o humor no texto e as atuações dos protagonistas servem como tempero para a obra, impedindo-a de chegar à mesa fria e sem gosto.
Se oferecesse o mesmo tratamento à caracterização de Pauline, uma figura-chave para seu terceiro ato, O Sabor da Vida talvez evitasse alguns tropeços na sua conclusão. A última cena do filme, uma ode a essa cozinha aparentemente intocada pelo pecado e maldade (uma noção fortalecida pela fotografia angelical de Jonathan Ricquebourg, transformando o cômodo num local abençoado pelos céus), é uma arrebatadora viagem pelo tempo capaz de arrancar mais lágrimas do que uma cebola cortada. Antes disso, entre o fim do segundo ato e essa comovente sobremesa, o filme deixa o ar escapar um pouco.
É um período de marasmo na narrativa, mas também um que condiz com as temáticas dessa simpática mas surpreendente poderosa degustação do amor no outono da vida, como Dodin gosta de falar. Sem entrar spoilers, digamos que a fome se instala nessa outrora farta residência, e por esse lado talvez esse momento insosso seja adequado.
Afinal, em O Sabor da Vida, não pode haver algo mais devastador do que recusar uma refeição. Gastronomia tem voltado com tudo como um dos principais interesses do cinema e televisão, só ano passado O Menu e O Urso foram alguns dos hits desses respectivos campos, mas poucas vezes a caridade de cozinhar para o outro, ou o gozo de provar algo preparado por quem nos ama, foi tão bem transmitido. Com paciência, Ahn Hùng deixa seus ingredientes se conhecerem, desfrutarem das texturas e características um do outro, para causar em nosso coração uma explosão de sabores.