
The Seed of the Sacred Fig é denúncia ferrenha contra regime iraniano
Diretor Mohammad Rasoulof foi condenado a oito anos de prisão por fazer filmes e documentários considerados inapropriados

Crítica
É inevitável, e até necessário, falar do contexto da estreia de The Seed of the Sacred Fig no Festival de Cannes 2024. Pouco mais de um mês antes da realização do evento, o diretor iraniano Mohammad Rasoulof foi condenado a oito anos de prisão por fazer filmes e documentários que o regime do país julgou inapropriados. Ele apelou a sentença, e aproveitou a demora burocrática para quebrar sua tornozeleira e fugir. Foram 28 dias se escondendo pela Europa até chegar na França e exibir o projeto, uma denúncia ferrenha do que acontece em sua casa.
A palavra “casa” é até apropriada, já que Rasoulof usa o contexto familiar para falar justamente da corrupção, e corruptibilidade, do sistema que o condenou. As divisões políticas e sociais do Irã, as mentiras contadas pelo governo, a violência policial e a ausência completa de justiça são achatados dentro de um pequeno, mas confortável, apartamento em Teerã. Lá moram Iman (Missagh Zareh), que na primeira cena do filme é visto recebendo uma arma carregada. Trata-se de um "presente" para acompanhar sua promoção para o cargo de juiz investigativo na capital. Um dia depois, ele explica, ao lado da esposa Najmeh (Soheila Golestani) para as filhas Rezvan (Masha Rostami) e Sana (Setareh Maleki) a necessidade de manter seu novo cargo em sigilo.
“Em todo caso há um vencedor e um perdedor,” ele explica. “O perdedor pode achar que o resultado foi injusto e buscar vingança.” Mas o que Iman não sabe ainda é que o maior perigo para o bem-estar de seu lar não virá de uma força exterior. O problema já está dentro daquelas paredes. Este borbulha lentamente, e tem como estopim protestos que tomam conta de todo o Irã depois que a polícia de Teerã prende e mata uma mulher que estava, supostamente, usando mal seu hijab. Inspirada em diversos episódios reais e infelizes, a história foi vendida pelo governo como uma morte acidental por um infarto, mas o povo não comprou isso. Gritos se espalham pelas ruas da cidade e chegam até a escola e faculdade onde Sana e Rezvan, respectivamente, estudam.
Lentamente, Rasoulof aumenta a tensão nesse lar prestes a se fragmentar. O acesso a redes sociais fez das meninas questionadoras das práticas mais rígidas da sociedade na qual vivem, mas a disciplina de seus pais significa que é preciso ter cuidado. Durante boa parte do filme, os embates se configuram entre as filhas e a mãe. Najmeh é, diante delas, irredutível. Ela defende o regime, critica os protestos e insiste no cuidado com o pai. Sozinha com o marido, porém, ela expressa dúvidas. O roteiro de Rasoulof se recusa a reduzir a mulher, interpretada por Golestani como alguém com um eterno grito preso na garganta, a uma figura unidimensional, e vê-la navegando nas águas turbulentas que visitam sua residência é doloroso e essencial.
Semelhantemente, Zareh impede que olhemos para Iman como um vilão caricato por conta de sua abordagem mais quieta. Os protestos o removem de sua casa durante muitos dias, mas quando ele enfim começa a conversar com as filhas para tentar convencê-las a abandonar seu despertar político, Iman jamais levanta a voz, e até procura controlar os acessos de raiva de sua esposa. Enquanto isso, Rostami e Maleki criam uma linguagem própria, trocando olhares silenciosos enquanto assistem, em seus celulares, a massacres injustificáveis.
Os vídeos assistidos pelas duas tomam conta de toda a tela, e são gravações reais de acontecimentos horrendos no Irã. Atropelamentos, tiroteios, execuções. Rasoulof cria um nó em nosso estômago semelhante ao que as mulheres de The Seed of the Sacred Fig estão sentindo, mas sem dúvidas muito menor do que aquele experimentado por iranianos no mundo real, inclusive por Zareh e Golestani, que seguem em risco no seu país natal e foram homenageados pelo diretor enquanto este andou pelo tapete vermelho de Cannes.
Eventualmente, um desses casos afeta uma amiga próxima de Rezvan. Com a família distante, ela tem só a casa da colega para usar de refúgio. Rasoulof usa esse momento para nos colocar face a face com as consequências da violência dos registros que sublinham todo o filme. É uma sequência apropriadamente assustadora.
É, também, a entrada metafórica de todas as circunstâncias exteriores na casa de Iman. Logo depois disso, ele percebe que sua arma sumiu, e entra em parafuso. Ele começa a questionar suas filhas e esposa, certo de que não a esqueceu no trabalho, mas que uma delas é responsável pelo sumiço, e chega ao ponto de levá-las para um interrogador da promotoria no que deveria ser a gota d’água para elas. Se descoberto, esse erro o colocará na prisão por anos. Mas há um perigo mais imediato: seu endereço e identidade são publicadas na internet. Eles precisam fugir.
Iman é apresentado em The Seed of the Sacred Fig como um funcionário público honesto, que trabalhou 20 anos fazendo o correto. Como juiz investigador, porém, ele é ordenado a fechar os olhos para certos processos e apenas assinar documentos que não são nada menos do que declarações de morte para supostos criminosos. Rasoulof parece querer que acreditemos numa espécie de arco de descoberta para o homem. Especialmente dada a intensidade dos embates emocionais entre Najmeh e as filhas, em especial a mais velha, é até fácil imaginar este filme como um que a coloca no papel de antagonista.
Rasoulof, porém não pode ignorar a verdade de que as mulheres são as principais vítimas das práticas que seu filme está denunciando, e no lugar de manter a honestidade de Iman, faz o personagem entrar numa espiral de loucura e agressividade nem sempre justificada no texto, particularmente dada a velocidade dessa virada, mas profundamente relevante do ponto de vista temático. Isso leva The Seed of the Sacred Fig para uma conclusão longe de Teerã que, contudo, dispensa bastante a lógica das personalidades envolvidas, moldando cada uma a necessidade do diretor para criar suspense, refletindo a situação emocional daquela família e daquele país.
A execução de tal suspense não está no patamar dos debates levantados pelo filme, e depende de conveniências às vezes alarmantes. A questão é que a névoa de lamentação estabelecida pela direção de Rasoulof supera qualquer tropeço no controle do tom. Há um pranto em The Seed of the Sacred Fig, um título que se refere a uma semente cujas raízes crescem sufocando outras árvores. Este é o filme de um cineasta, de um povo, em busca de ar.

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