The Shrouds traz o cinema corporal de David Cronenberg para a era da IA
Filme questiona: o que acontece com os corpos depois que morremos?
Crítica
“Você passou a vida obcecado por corpos.” Essa frase, dita em resposta a Karsh (Vincent Cassel) em The Shrouds, poderia muito bem ser direcionada ao diretor do filme. Há décadas o principal nome do body horror, David Cronenberg fez uma carreira baseada na forma como estica, distorce, deturpa e celebra os corpos dos seres humanos. Não é uma surpresa, então, que em seus 80 anos de idade e ainda processando a perda da esposa para o câncer em 2017, o cineasta canadense tenha levado essa abordagem até sua sequência inevitável: o que acontece com os corpos depois que morremos?
Através do personagem de Cassel, essencialmente um avatar para o próprio diretor — incluindo ternos escuros e o cabelo grisalho — Cronenberg leva seu olhar voyeurístico para a decomposição e as tentativas de preencher o vazio inerente ao luto. Karsh inventou a tecnologia que dá nome ao filme, e que permite assistir a um feed ao vivo (em 8K!) do que está acontecendo com um ente querido enterrado no cemitério da sua GraveTech. Para apresentar tudo isso, Cronenberg encena um encontro entre Karsh e uma nova pretendente, onde usa e abusa do humor mórbido para pautar todo diálogo expositivo numa onda de ironia ácida. Quando Karsh puxa o smartphone e diz “se você baixar o app do GraveTech” e destaca recursos como zoom e 3D, é impossível segurar o riso nervoso. É macabro, mas não seria chocante ouvir isso, um dia, saindo da boca de um executivo do Vale do Silício.
O estopim para essa empreitada foi a perda de sua esposa Becca (Diane Kruger, que num toque a lá Gêmeos: Mórbida Semelhança também interpreta a irmã gêmea, Terry) e tudo estava progredindo relativamente bem até que um ato de vandalismo e um ataque hacker travam Karsh e todos os seus clientes do lado de fora dos servidores. O timing não poderia ser pior. Karsh está no meio de negociações com Soo-Min (Sandrine Holt), esposa de um bilionário moribundo disposto a financiar um cemitério da GraveTech na sua cidade natal Budapeste, e grupos de ativismo ecológico estão começando a desafiar seus negócios.
Para eles, inserir tecnologia no solo da mãe Terra é uma violação da pureza da natureza. Karsh pode ser contra essa visão ambientalista, mas Cronenberg explora bastante a relação cada vez mais dependente da humanidade com apps, inteligência artificial e afins. Não é exatamente uma denúncia, mas The Shrouds também identifica a falta de limites em nossa capacidade de app-ficar tudo. Aqui, depois de inserir tecnologia em cada aspecto de nossas vidas, só nos resta colocar câmeras e sensores para rastrear a morte. Na coletiva do filme no Festival de Cannes, Cronenberg abordou especificamente o tópico de IA: “Nós a recebemos? Nós a temos? Os dois… então o que fazemos? Eu não sei. Não tenho ideia.”
The Shrouds sugere que ele tem ideias. Uma das principais aliadas de Karsh na busca por respostas é Hunny (também interpretada, claro, por Kruger), uma assistente virtual criada exclusivamente para ele por seu ex-cunhado, o marido de Terry, Maury (Guy Pearce, divertidíssimo) que vira um caminho excelente para algumas das piadas mais sagazes do filme, e também aponta para como tentamos tapar os buracos de nossas almas com o que está em nossas telas. Karsh, interpretado por Cassel com muito carisma, vive cercado de reproduções da imagem de sua mulher — seja através de Hunny ou da GraveTech. Ele, porém, nunca parece tão vivo quanto quando interage com Terry, que tem literalmente o mesmo rosto dela. Carne, para Cronenberg, é insubstituível.
De um ponto de vista temático, The Shrouds é riquíssimo. Onde Cronenberg se complica é no desenvolvimento disso tudo no andamento do roteiro, em particular quando o filme precisa trafegar no suspense. Na busca por respostas, Karsh descobre uma possível conspiração atrás da outra. Uma envolve espiões russos, a outra chineses. Há médicos desaparecidos e teorias a mil, e The Shrouds eventualmente entra numa roda de reviravoltas que parecem jogar o filme pra um lado e pro outro sem oferecer nenhum progresso real. A segunda hora de The Shrouds, em particular, dá voltas atrás de voltas até chegar numa conclusão anticlimática.
É uma sensação parecida à de Crimes do Futuro, há dois anos. Ali, também não há uma crescente de tensão que é liberada com o encerramento, e apesar de The Shrouds guardar algumas de suas melhores imagens para os últimos minutos, fica a impressão de que Cronenberg preferia ter ficado unicamente no estudo de um personagem que é, basicamente, seu espelho. Entrelaçar o filme com o mistério e a investigação dão ares de gênero que ele ou não tem interesse, ou não tem imaginação para seguir até o fim.
Há, porém, uma resposta muito humana para as perguntas levantadas em The Shrouds. Ao fim de tudo, até uma figura com forte conexões com o mundo virtual como Karsh precisa retornar ao contato físico para superar o luto, ou ao menos lidar melhor com ele. As IAs e os aplicativos só perpetuam o buraco. Afinal de contas, se eles providenciassem uma solução, por que continuaríamos a usá-los?