A Substância é uma maravilha perturbadora, nojenta e hilária
Filme estrelado por Demi Moore e Margareth Qualley é um body horror com texto afiadíssimo
Crítica
Há um clássico instantâneo de body horror no Festival de Cannes 2024, e curiosamente ele não vem com a assinatura de David Cronenberg. O cineasta canadense, responsável por Gêmeos: Mórbida Semelhança e A Mosca, tem um filme na seleção do ano, mas quem adicionou seu nome aos halls desse subgênero do terror foi a diretora francesa Coralie Fargeat com o seu perturbador, nojento e hilário A Substância.
Tratando da relação entre a busca pela beleza eterna e o sofrimento corporal supostamente necessário para tê-la com as lentes do cinema hollywoodiano, A Substância acompanha Elisabeth, interpretada por uma Demi Moore perfeitamente escalada para o papel, sendo descartada por uma indústria do entretenimento cada vez mais interessada em mulheres mais jovens, e só em mulheres mais jovens, encarnada no produtor comicamente exagerado Harvey (Dennis Quaid, a 100km/h). Estrela há décadas, vencedora do Oscar mas hoje rebaixada a apresentar apenas um programa de dança fitness para a televisão, Elisabeth é presenteada com uma demissão no dia em que completa 50 anos de idade, e como cereja do bolo vai parar no hospital. Lá, contudo, ela recebe outra surpresa.
Esta vem através de um pendrive com um vídeo suspeito sobre a substância titular, uma fórmula que promete garantir beleza, juventude e melhorias para qualquer um. Depois de entrar em contato com o telefone informado e buscar o kit — composto pelo líquido de ativação de uso único, sustento alimentício para estabilizar seu “outro eu” diariamente e um mecanismo para “transferência” que deve ser utilizado, sem exceções, a cada sete dias — Elisabeth injeta essa droga misteriosa. Ela acorda depois da primeira de uma série de sequências igualmente assustadoras e criativas de horror onde a pele, nervos e a carne humana são contorcidos e remodelados de maneira tenebrosa.
Subitamente, ela se vê num novo corpo. Para este, ela dá o nome de Sue. O rosto agora vem de Margaret Qualley. A mulher vivida por Moore está no chão, desmaiada. É aí que as coisas ficam complicadas. A substância não rejuvenesce. Sua resposta para o problema do envelhecimento é o nascimento de uma nova pessoa para a qual a consciência pode ser transferida por uma semana antes de precisar “recarregar” dentro de sua antiga casa. Apesar dessa separação, a misteriosa empresa por trás desta invenção química insiste: você é uma só. Não esqueça disso.
Não é preciso dizer que Elisabeth ignora esse alerta, e as raras cenas nas quais ela cruza com outro usuário sugere que esse problema é universal. Numa de suas melhores decisões,A Substância mantém os responsáveis pela criação dessa técnica envoltos em mistério, representados somente pela voz robótica do outro lado das ligações da protagonista. Acompanhamos unicamente Elisabeth, que depois de provar o gostinho do sucesso pela segunda vez na vida, prefere aparecer como Sue.
A escolha das duas atrizes se prova essencial quando essa dinâmica começa. Com Moore, temos uma extensa bagagem. Já a assistimos há anos, a vimos envelhecer diante de câmeras, sejam do cinema ou de paparazzi, e ser incrementalmente escanteada por Hollywood em favor de novos nomes, como o de Qualley. Colocar Moore, ainda deslumbrante, como acabada pode parecer exagero da parte do filme, até notarmos que trata-se de uma escolha intencional. A que ponto a sociedade midiática chegou para chamar Demi Moore de feia e velha? Qualley, por sua vez, não só é uma face cujo sucesso é recente, como também dona de uma sensualidade e encanto contemporâneos. O tal rosto de “quem viu um iPhone.”
Essa passagem do bastão aponta para uma série de verdades sobre a vida nos holofotes, inclusive a dura percepção de que atrizes famosas há anos serão, para sempre, acompanhadas de imagens do passado, quando tinham menos rugas ou cabelos brancos. O que dizer, então, do uso de substâncias químicas (legais e ilegais) na busca por perder peso, ou dos inúmeros procedimentos plásticos para “consertar” narizes, bocas e olhos? A chave para o sucesso deA Substância está em potencializar o lado macabro disso tudo, assim como a de expor de maneira cômica, mas não menos real, a obsessão de um mercado dominado por homens com o tal ideal físico da mulher.
É justo dizer queA Substância é filmado com o male gaze em mente, em particular nas cenas de Sue dançando, onde as curvas de Qualley dominam a tela. Ao ser combinada com o texto afiadíssimo e contido de Fargeat, nos deixa sempre conscientes disso. O viés masculino do olhar passa a denunciar a si mesmo. Para além disso, o minimalista mas impactante trabalho de Stanislas Reydellet no design de produção, combinado com a fotografia de planos abertíssimos de Benjamin Kracun, esticam todo ambiente, seja o exterior de um prédio ou o interior de banheiro, até que este pareça hostil. Cria-se uma atmosfera densa. Quem não ficaria desesperado?
Então há as atuações duplas de Moore e Qualley. A primeira entrega um dos trabalhos mais cheios de camada de sua carreira, deixando palpáveis tanto a vulnerabilidade de uma mulher que se vê sozinha no mundo com a ira de quem sabe que isso não é culpa sua. Já sua quasi-doppelgänger é vivida por Qualley como uma sedutora viciada na própria vaidade, bêbada e se divertindo perversamente por ser privilegiada pela economia de atenção. Mas A Substância sabe que nessa bolsa de valores, é impossível ficar sempre no topo, e eventualmente a perfeição obtida por meios artificiais começa a rachar.
Quando isso acontece, o filme entra numa espiral de body horror onde cada cena parece aceitar, e vencer, o desafio de ser mais perturbadora que a anterior. Aos poucos, como uma doença, os corpos de Elisabeth e Sue começam a mostrar os efeitos colaterais de suas escolhas, e quando a mais nova decide que não vai voltar pro corpo da mais velha, A Substância responde intensificando esse processo até entrar num território de puro terror. Que Fargeat ainda encontre maneiras de arrancar de nós um riso ansioso, mesmo quando nosso desejo é de fechar os olhos e o estômago começa a pedir para ser esvaziado, diz muito sobre seu controle de tom. Algumas piadas vão tão ao extremo que nos deixam pra trás, mas a diretora merece mérito por preparar o terreno para elas. Outras, como a última, acertam diretamente no alvo.
É uma conclusão extensa, mas que leva os temas debatidos por A Substância ao limite, e então quebra essa barreira para nos colocar no território mais maravilhosamente desconfortável possível. Se vivemos obcecados pelo que vemos, então é seguro dizer que esse filme será nosso novo foco.