Cannes: Armageddon Time - Crítica do Chippu

Cannes: Armageddon Time - Crítica do Chippu

James Gray revisita sua juventude com um elenco de primeira liderado por Anthony Hopkins, Anne Hathaway e Jeremy Strong

Guilherme Jacobs
20 de maio de 2022 - 9 min leitura
Notícias

CANNES - Desde o sucesso de Roma, cineastas do mundo inteiro têm replicado a fórmula do “filme sobre sua própria juventude” com diferentes níveis de sucesso. Kenneth Branagh, Richard Linklater e (estreia em novembro) Steven Spielberg para citar alguns. Mas onde Alfonso Cuáron acertou ao se colocar de lado e focar numa figura formadora de sua vida, seus contemporâneos se colocam no coração da narrativa, mas quase sempre servem apenas como portas através das quais a audiência irá descobrir aquele mundo. Paul Graff (Banks Repeta), a versão fictícia de do diretor James Gray em seu excelente Armageddon Time, também cumpre essa função, mas diferente de outros exemplos deste “gênero”, ele é um personagem completo. Como consequência, a obra inteira é enriquecida.


Claro, descobrimos o Queens de Nova York em 1980 através de seus olhos curiosos, mas Paul - interpretado por Repeta com uma surpreendente capacidade para ambos humor e drama - não espera as coisas acontecerem com ele para ir atrás do desconhecido. Ele é um agente ativo. Sem medo de questionar e desobedecer, ele acredita já saber o suficiente da vida para ser a pessoa mais inteligente em cada sala. Para seus pais, vividos por Anne Hathaway e Jeremy Strong, isso requer paciência. A família, cuja ascendência é judia, passa por momentos delicados tanto em casa quanto fora. O dinheiro está curto, Ronald Reagan busca reeleição, as tensões raciais e sociais parecem a ponto de explodir e, o mais importante, o avô do menino, interpretado em mais um carrossel de ternura e saudade por um incansável Anthony Hopkins, está mais e mais perto do fim.


São muitas cores para um quadro só, e Gray nem sempre consegue se manter dentro das linhas. Seus erros, porém, vêm de um lugar honesto e cuidadoso. A partir do ponto de vista de Paul, com nuance e liberdade, ele consegue criar uma pintura mais complexa e profunda da sua juventude do que vemos em obras como Belfast ou Apollo 10 1/2. Paul está entrando na fase da vida onde descobertas difíceis precisam ser feitas. Há racismo em sua classe de aula, e seus pais, apesar de condenarem as expressões mais explícitas desse comportamento horrendo, não são imunes à discriminação quando o assunto chega perto demais da família. O menino ainda descobrirá outras falhas em sua família - violência, temperamento, conversas escondidas e o preconceito contra negros, algo tão entranhado que até se perde de vista. Ao criticar as políticas de Reagan, os Graffs se vêem como no lado certo da história. Mas isso nem sempre é posto em prática.


Armageddon Time captura com beleza melancólica o momento no qual a vida começa a te decepcionar. Sua família, seu país, seu futuro. Gray mostra com precisão como o surgimento das manchas na fábrica da realidade pode ser frustrante e confuso para uma criança, mas não tem medo de denunciar até seus próprios erros. Num certo momento, por medo de se constranger na frente de colegas abertamente racistas, Paul trata seu melhor amigo - um garoto negro chamado Jimmy (Jaylin Webb) - como desconhecido. Racismo é praticado pelos protagonistas de Armageddon Time, mas um olhar atento será capaz de enxergar suas críticas ao assunto como precisas e cuidadosas. Retratar a realidade não significa aprová-la.


O melhor exemplo dessa abordagem está no seu pai. Como já havia ficado claro em Ad Astra, o relacionamento de Gray com seu pai não é simples, e Armageddon Time aprofunda essa noção graças, em grande parte, à potente atuação de Jeremy Strong. Ele é como uma panela de pressão prestes a explodir. Você não quer estar próximo quando a tampa sair voando. O pai do menino detesta Reagan e se diz profundamente frustrado com a injustiça social da sociedade. Por isso, ele diz ao garoto, você precisa garantir seu sucesso custe o que custar. Se isso significar deixar um negro levar a culpa, que seja. A mãe, que Hathaway interpreta também no limite da emoção (mas, aqui, de alguém se segurando para não quebrar) é dotada de uma hipocrisia parecida. Ela se ofende ao ver a escola tratando o filho como atrasado, mas faz questão de mencionar a cor de pele do colega que apresentou maconha para Paul.


Armageddon Time, porém, não perde o equilíbrio nessas questões. A família Graff detesta o Reaganismo dos anos 80 e como o sonho americano foi transformado (ou revelado) numa competição na qual há claros perdedores, mas eles não enxergam seus próprios erros e como perpetuam esse sistema. Isso não quer dizer, porém, que Paul não possa ter momentos de emoção genuína com os pais. Eles são pessoas. Há equívocos e falhas, e para amadurecer, Paul precisa percebê-los e evitá-los, mas eles são pessoas e há razões por trás de suas visões de mundo. Que o diretor os observe assim não sugere tolerância ao comportamento deles. Seu propósito é, na verdade, apontar as raízes de tantos problemas atuais.


A única instância na qual Armageddon Time parece tropeçar é na aparição surpreendente de Jessica Chastain como Maryanne Trump, irmã de Donald Trump, na escola privada onde os pais colocam Paul para o menino aprender "disciplina''. Ali, a família Trump faz sua declaração a favor da mentira da meritocracia, de como é bom sentir que você realmente é digno daquela recompensa. Caridade é para os fracos. O momento serve para Gray traçar um paralelo entre aquela época e a atualidade. Quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas. Os paralelos, porém, já estavam claríssimos antes de Chastain entrar em cena. Aqui, o diretor troca a qualidade narrativa por um discurso didático.


Onde ele não comete o mesmo erro, e onde está a figura mais importante da vida de Graff (e, por tabela, Gray), é com o personagem de Hopkins. Atuando de forma terna e receptiva, o vencedor do Oscar mais uma vez se declara como digno de todos os elogios possíveis no campo. Hopkins domina cada segundo de tela apenas com seu olhar, e quando fala se mostra solto e preciso, ao mesmo tempo, exalando leveza mas nunca perdendo de vista o alvo. É ele quem mostra para Paul seus erros. Seu contato mais direto com a Europa nazista lhe dá o privilégio de reconhecer quando poder está sendo abusado para algo maléfico, e como é importantíssimo escolhermos um lado em momentos assim.


Hopkins, porém, alcança esse impacto justamente porque os personagens de Armageddon Time não são tratados de forma binária. Nem mesmo Paul. Quando o garoto é confrontado pelo seu avô, diferente da cena com Maryanne Trump, Gray consegue transmitir sua mensagem de forma imaculada exatamente porque ela vem como parte da história, de uma narrativa construída sem fugir das perguntas difíceis. Ele não tem todas as respostas, mas aqui se mostra capaz de articular com excelência as dores de crescimento na busca por elas.


4.5/5

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