Martin Scorsese e o Combustível de Assassinos da Lua das Flores

Martin Scorsese e o Combustível de Assassinos da Lua das Flores

Por que a forma como o diretor tratou a história transforma o filme numa obra-prima

Guilherme Jacobs
20 de outubro de 2023 - 10 min leitura
Notícias

Quando eu escrevi minha crítica de Assassinos da Lua das Flores, há inacreditáveis cinco meses, eu não sabia o que podia e não podia falar. A divulgação do filme até aquele momento, sua estreia no Festival de Cannes (ainda não acredito que estava lá), se limitava à conhecida imagem de Leonardo DiCaprio e Lily Gladstone à mesa, e um excelente teaser divulgado alguns dias antes. Saindo daquela sessão eletrizante, eu não imaginava como filme seria divulgado ou quais elementos da história seriam considerados segredos.

O resultado você vê na minha crítica. Me limitei muito na discussão da posição do personagem de DiCaprio, a influência de seu tio William Hale (Robert De Niro) e a pouca presença do FBI, ali representado pelo bom agente Tom White (Jesse Plemons). A razão é simples: Martin Scorsese havia feito o filme de uma maneira totalmente inesperada. Tendo lido o livro homônimo de David Grann recentemente, minha expectativa, especialmente se tratando desse diretor, era de um suspense de crime sobre o Reino de Terror; como os índios Osage foram sistematicamente assassinados para que homens brancos obtivessem suas terras ricas em petróleo, e a investigação.

Tudo isso, claro, está no filme. Mas naquele dia em Cannes, quando percebi como o filme havia escolhido lidar com a narrativa — deixando claro desde cedo a participação de Ernest (DiCaprio) na morte dos Osage, incluindo os da família de sua esposa Mollie (Gladstone), a quem ele envenenou e quase matou — eu fui pego de surpresa. Consultando meu colega de apartamento e crítico Marcio Sallem, decidi considerar isso tudo spoiler. Não porque o filme tratava os fatos assim — novamente, tudo fica claro muito rápido — mas porque era maio, e a estreia não seria até outubro.

Eu fui cauteloso demais, e isso prejudicou minha crítica. Tive apenas algumas horas entre a estreia e a queda do embargo para escrever, e precisava de mais tempo para processar tudo aquilo. Antes, eu sabia que DiCaprio seria White e Plemons viveria Ernest, e que ambos haviam trocado de papel. Ao longo dos meses seguintes, em artigos e entrevistas, descobri que a troca de personagens veio, na verdade, por que o filme havia sido inteiramente reestruturado, trocando o foco do FBI para os Osage, e que na divulgação e na mídia não haveria mistério algum quanto ao papel de Ernest.

Foi para o melhor. Como Scorsese disse em entrevista recente a Richard Brody no New Yorker, se ele fizesse um filme policial, ficaria muito óbvio para a audiência quem eram os responsáveis pelos assassinatos, e não haveria muito de suspense ali. A transformação deixa Ernest e Mollie no centro da narrativa, e cria um conflito muito menos óbvio (e muito mais interessante) para Assassinos da Lua das Flores explorar. Uma coisa acertei na crítica: o filme é menos sobre se os culpados serão presos e mais sobre de que lado Ernest estará quando os créditos rolarem.

Nessa reorganização do material, enfatizando menos os "salvadores" federais e mais o peso emocional dessa trágica narrativa, Scorsese encontrou o verdadeiro combustível de Assassinos da Lua das Flores. O filme é abastecido de duas maneiras principais, uma no texto e uma no contexto.killers

No texto, claro, há o casamento de Ernest e Mollie. É notável como DiCaprio e Gladstone fazem dois personagens tão diferentes se unirem. Do flerte inicial ao coração partido, Ernest e Mollie rapidamente se tornam parte da vida um do outro de tal maneira que chamar o que existe entre eles de química é um eufemismo. Isso é compromisso. Aliança.

No livro, há muito pouco sobre a pessoa de Ernest (o foco, naturalmente, é no que ele fez), e tampouco há uma grande exploração do psicológico de Mollie. Scorsese, então, encontra drama nos elipses separando esses fatos. Através destes espaços vazios, ele não só adapta o livro de Grann, como o expande; não adicionando ou mudando, mas explorando profundamente as perguntas presentes neste vácuo de informação. Por que Mollie só se divorciou depois do julgamento, meses após o surgimento das suspeitas e acusações? Por que Ernest parecia, de uma página para outra, mudar de ideia sobre testemunhar contra o tio?

A resposta, nos olhos de Scorsese, é esse casamento. Que tipo de amor é esse? Na verdade, isso é mesmo amor? Até onde vai o perdão? O quanto podemos sofrer por um voto? Quando desistiremos de alguém que é inseparável de nossa existência? O maior impacto de Assassinos da Lua das Flores não vem quando Ernest é preso, mas quando Mollie enfim fecha a porta para ele, na mais poderosa das várias cenas onde a atuação quieta mas absoluta de Gladstone revela o estado interior daquela mulher de poucas palavras apenas com os olhos.

É compreensível que alguns Osage, como o consultor de linguagem da produção Christopher Cote, tenham reservas quanto ao tratamento de Ernest no filme, e essa tentativa de Scorsese de justificar emocionalmente as contradições dele. Para Cote, um diretor Osage não teria tentado encenar amor naquela relação. É bem provável. Eu não quero de forma alguma dizer que Scorsese, o italianoamericano, sabe mais do que as pessoas mais afetadas pelos Assassinos, mas ele fez o que podia, e no processo honrou os Osage de várias formas. Observações como a de Cote coexistem com uma série de elogios para a forma com a qual o filme celebrou, empregou e tratou a tribo, o que me leva ao contexto.

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Descrever Ernest como mais um dos personagens autobiográficos de Scorsese é um exagero, mas ele oferece um vislumbre da tensão que fica óbvia nos últimos momentos de Assassinos da Lua das Flores, quando o próprio diretor aparece. Há uma razão pela qual até em minha crítica feita às pressas, eu quis destacar isso. Diferente de quando surge em outros de seus filmes, Scorsese não entra em cena de maneira hitchcockiana. Isso não é Stan Lee na Marvel. Não é uma referência, é uma confissão. Ele está, ali, deixando visível todo o processo de fazer esse filme.

Scorsese precisou escolher como tratar esse projeto, e na concepção inicial do roteiro, ele era como um dos brancos que ignoram o verdadeiro coração dessa história: os Osage. No caso dos atores de programas de rádio (financiados pelo FBI, claro) fazendo sotaques racistas, ou mesmo do obituário de Mollie lido por Scorsese, um texto no qual não há uma só menção das mortes, vemos como homens brancos vêm narrando essa tragédia da forma errada há décadas.

Ao se colocar à frente da câmera, Martin Scorsese reconhece que, sim, ele é mais um branco contando a história deste povo. Não importa o quão boas sejam suas intenções, ou quantos Osage estejam envolvidos na produção, isso nunca vai mudar. Qual é sua resposta, então? Reconhecer isso, fazê-lo com pesar e respeito, e usar exatamente a reformulação geral de Assassinos da Lua das Flores para dizer de que, diferente dos outros, ele não esqueceu dos Osage.

Naquela entrevista no New Yorker, Richard Brody também aponta para esse momento, e eu vou adotar a palavra usada por ele para descrevê-lo. Scorsese quis ser uma testemunha. Assim como Ernest, ele recebeu a chance de discursar sobre esses acontecimentos na frente de uma grande multidão. De que lado ele ficou? Em Assassinos da Lua das Flores, o diretor se entregou.

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