Fim do Cinema: Em defesa do final de Babilônia
Com uma montagem passeando pelas eras do cinema, Damien Chazellle celebra seus feitos e prediz sua morte
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2022 foi o ano das Escolhas (com E maiúsculo) no fim de filmes badalados. Do último truque de câmera de Steven Spielberg em Os Fabelmans à brilhante piada usada por Todd Field para fechar seu maravilhoso TÁR, não faltam grandes decisões através das quais os cineastas da temporada de premiação apresentam suas teses, sublinham seus argumentos e adicionam uma pontuação final definitiva em suas dissertações. Nenhuma delas, porém, foi tão polêmica e criticada quanto a montagem usada por Damien Chazelle no fim de seu retrato maximalista do fim da era do cinema mudo em Hollywood, Babilônia.
Por que? Bom, basta assistir:
A sequência mostra o retorno do Manny Torres de Diego Calva a Hollywood após anos isolados no México depois de quase perder sua vida para salvar a Nelly de Margot Robbie, uma das várias estrelas de filmes mudos que perdeu espaço na transição para os talkies encenada por Chazelle em Babilônia. De volta à cidade dos sonhos, ele vai ao cinema para assistir a um clássico. Mergulhado no metacomentário, Chazelle transforma Cantando na Chuva, por si só uma crônica desse período de mudanças sísmicas, numa versão fictícia dos acontecimentos do próprio Babilônia, e Manny reconhece o avanço da arte que tanto ama — um movimento que deixou até ele mesmo para trás — numa euforia de sentimentos. Nesta, representada pelo diretor como um vislumbre das décadas seguintes, ele vê os próximos 100 anos. A visão termina com uma cena de Avatar, o blockbuster digital de James Cameron.
Como eu disse, é uma Escolha.
Em minha crítica de Babilônia, ainda incerto sobre meus sentimentos acerca desse arremesso à longa distância do diretor, pendi para o negativo: “A forma como o cineasta apresenta sua tese vai ser genuína para uns e constrangedora para outros. É um momento de paixão palpável, mas cujo otimismo parece, francamente, inocente. O que lhe derruba não é a tentativa de emocionar, mas num espetáculo cujo título remete ao ápice da genialidade e corrupção, inocência não tem espaço.”
Agora, ainda reconhecendo a inevitabilidade de críticas a esse tipo de montagem, eu preciso me retrair. A sequência final de Babilônia pode ser muitas coisas, mas otimista e inocente, ela não é. Isso requer uma obstinação clara. Conquanto a homenagem seja óbvia, e a semelhança aos supercuts de cinéfilos no YouTube se faça visível ao ponto de enxergarmos um botão de Like embaixo da tela, com o título “The Evolution of Cinema (4K)” estampado no topo, Chazelle está, ainda ali, construindo uma narrativa sobre essa arte e a indústria ao seu redor, e sobre sua inevitável supernova. Um fogo prestes a lhe consumir por completo e, claro, produzirá um espetáculo.
O cinema está caminhando a passos cada vez mais largos a novos limites tecnológicos e criativos, e o combustível dessa maratona desenfreada é o sangue de pessoas como Manny, Nelly e os outros personagens de Babilônia, sacrificadas no altar da bilheteria, dos prêmios e da novidade.
É fácil desmerecer essa jornada pelo tempo como uma simples carta de amor ao cinema, um monumento às características mais frívolas de Babilônia que pode ser rejeitado até por pessoas cuja opinião sobre o restante do filme é positiva (como fiz em minha crítica).
Há, sim, declarações claríssimas de paixão em Babilônia. Sua segunda grande sequência, acompanhando os primeiros dias caóticos e inesquecíveis de Manny e Nelly em diferentes sets hollywoodianos, está praticamente suando com adoração e nostalgia pela energia das primeiras décadas do século 20, quando cada confusão parecia ser apenas um ingrediente a mais na inevitável junção de todos os elementos cinematográficos. Aliados, estes faziam filmes parecer criações espontâneas e monumentais. Torres de Babel erguidas pelos homens para tocar os deuses. Você precisava estar lá. Era mágico. Na verdade, assista:
Mas Babel caiu em pedaços, e na corda bamba entre a abundância de realizações e decadência moral, a Babilônia é, por fim, destruída. Primeiro, a cidade histórica, e depois o espírito babilônico que até hoje alia o pecado com conquistas. Hollywood segue cometendo holocaustos no altar. Sua perversidade é inseparável de seu apelo. Por isso, se Chazelle pretende celebrar o quão alto a torre conseguiu perfurar os céus, ele também precisa nos lembrar de quem foi esmagado quando ela desmoronou.
Chazelle tem, sabiamente, permanecido mais quieto quanto aos significados da montagem, mas numa entrevista com o ReelBlend Podcast, ele admitiu ter traçado uma linha em direção a filmes cada vez mais dependentes de imagens geradas por computadores. Vamos de Exterminador do Futuro 2 para Jurassic Park, de Matrix para Avatar. Essa metralhadora de CGI dispara depois da lendária tela de encerramento usada por Jean-Luc Godard em Week-end à Francesa: “Fin de cinema.” O alvo fica claro. De alguma maneira, Chazelle enxerga essa rota como apocalíptica. Como o apóstolo João na ilha de Patmos, testemunhando a queda da Babilônia numa visão oferecida por Deus, o diretor abençoa (ou amaldiçoa) seu personagem principal com a revelação escatológica da sétima arte.
Será pela modelagem 3D, capaz de criar alienígenas azuis ou de ressuscitar atores mortos? Será pelo meteoro da inteligência artificial, cujos usos ainda estamos compreendendo? Chazelle não chega a denunciar um anticristo. Ele apenas profetiza sua chegada. O problema é que para quem está na Babilônia, essa vinda será vista como messiânica. Matrix, Jurassic Park Exterminador do Futuro e outros longas usados pelo cineasta em seu fechamento operístico estão entre os grandes títulos dos últimos 40 anos, e independente de sua opinião sobre a relevância de Avatar, não há mais questionamentos sobre o status do titã de Cameron. Chazelle não sabe qual será o próximo membro dessa linhagem evolucionária, mas ele virá, e seu sucesso gigantesco será construído no abandono de artistas. O próximo Avatar cobrará a vida do próximo Manny.
Tal contradição — este armageddon celebrado, este crepúsculo dos deuses — é pontuado quando, após Avatar, Chazelle volta no tempo por meio século para nos dar um icônico momento de Persona / Quando Duas Mulheres Pecam, de Ingmar Bergman. Uma vez descrito como “o filme mais difícil de todos os tempos” pelo crítico John Simon, este monumento à ambiguidade retrata uma atriz perdendo sua capacidade de fala. Um retorno ao cinema mudo pintado pelo sueco com pedaços de película queimando, reações químicas e emocionais às imagens da telona que eventualmente levam, em meio a mãos pregadas na madeira e cadáveres em macas, à última tentativa de tocar o divino; o rosto ali projetado. O fim do cinema. Ou seria seu ápice?
Babilônia, claro, está longe de Persona. Chazelle não é Bergman, nem Godard, e sua capacidade de equilibrar tanto a festa em nome do cinema quanto o funeral pelo seu futuro está aquém do poder de um mestre de experimentar através desses rituais. Chazelle ainda é literal demais, mas Babilônia nos mostra a perda da inocência um dia presente em La La Land. Los Angeles não tem mais anjos.
Mas até La La Land oferece uma pista de suas intenções. Ali, o cineasta acaba com a história de amor de dois personagens ao realizar os sonhos profissionais de cada um. Este mesmo contraste alcançado pela concordância entre o afeto e amargura se vê em Whiplash, quando dois artistas em conflito fazem um pacto suicida e tornam seu sucesso dependente um do outro. Já em seu melhor trabalho, O Primeiro Homem, marido e mulher se reencontram, separados apenas por um vidro que representa seu futuro divórcio. Nestes três, terminamos com a troca de olhares entre as duas figuras centrais de cada narrativa.
Em Babilônia, Manny e o cinema se observam. Ali, o homem vê sua paixão florescendo na mesma velocidade em que desfalece. Ele chora e sorri.
Publicado originalmente em 7 de fevereiro de 2023