Barbie é uma divertida busca por significado em meio à objetificação - Crítica do Chippu
A artificialidade autêntica de Greta Gerwig confere beleza ao que poderia ser só um grande comercial
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Na maioria de suas entrevistas sobre Barbie, Greta Gerwig repete a mesma frase: “artificialidade autêntica.” Essa aparente contradição se tornou a filosofia com a qual a cineasta criou o mundo de Barbie, um comercial da Mattel elevado ao patamar de filme mais aguardado do ano graças ao trabalho incansável de marketing da Warner Bros. e a estética marcante com a qual a diretora o trouxe à vida, sempre reconhecendo, antes de qualquer crítica, que, sim, este um filme sobre um produto.
A tal “artificialidade autêntica” normalmente é associada ao visual da Barbieland, universo onde todas as bonecas e brinquedos da linha mais popular da Mattel existem, até mesmo os fracassos hoje fora de linha. Enquanto somos apresentados à Barbie de Margot Robbie, ao Ken de Ryan Gosling e toda outra variável possível dos dois, Gerwig monta um cenário que jamais se confunde com o mundo real, mas encontra realidade entre os objetos de plástico e horizontes pintados,. Então, é fácil entender por que essa máxima é tão interpretada no campo da direção de arte, fotografia e produção. A abordagem, porém, vai além disso.
Ao longo da última meia década, poucas vozes no cinema norte-americano se mostraram tão capazes de encarar mulheres como seres humanos completos, cheias de contradições e mistérios, tão interessantes por suas falhas quanto por seus méritos, e inteiramente dignas de carinho e cuidado. Em sua obra-prima de 2019, uma primorosa adaptação de Adoráveis Mulheres, ela colocou todo esse contexto em seu texto com memorável discurso da Jo de Saorsie Ronan (infelizmente ausente em Barbie).
Agora, quatro anos depois, Gerwig parece ter se desafiado. Será possível trazer esse mesmo olhar humanista — ou, talvez, autêntico — para a coisa mais artificial possível? Uma imagem feita para, literalmente, objetificar a mulher?
É um desafio interessante. Gerwig, segundo seu agente, almeja ser uma grande diretora de estúdio, um caminho talvez inesperado quando levamos em consideração como seu pequenino Lady Bird parecia revelar o próximo grande nome do cinema independente. A escolha foi, de fato, atípica. Com Barbie, Gerwig precisa tentar manter sua identidade em meio a pressão de dois senhores corporativos — Mattel e Warner — e lidar não só com toda a bagagem da boneca como uma ideia, mas também de ser uma produção que, em sua essência, é um exercício de branding.
Barbie, seja o filme, boneca ou personagem, afinal, é um poço de expectativas. O longa-metragem chega debaixo da promessa de ser o raro blockbuster com algo a dizer, a boneca é tanto um marco cultural quanto um padrão inalcançável, e a personagem é, supostamente, a mais perfeita Barbie de todas elas. Bom, pelo menos ela era, até um dia acordar com medo da morte e começar a apresentar defeitos que só podem ser consertados no Mundo Real, para onde vai com Ken.
Deixando para trás as outras Barbies (Issa Rae, Emma Mackey, Alexandra Shipp, Dua Lipa e assim vai), os outros Kens (Simu Liu, Kingsley Ben-Adir, Ncuti Gatwa) e o único Allan (Michael Cera, exatamente como você o imagina), nossa Barbie parte em direção de uma descoberta capaz de virar seu mundo de cabeça para baixo.
Não é segredo para ninguém que Barbie tem longas sequências no nosso mundo, nas quais a boneca dá de cara com a própria Mattel, gerida por Will Farrell num karaokê de si mesmo, e com uma mãe trabalhadora interpretada graciosamente por America Ferrera. Os detalhes desse tempo, porém, merecem ser descobertos no cinema.
Por ora, basta dizer que, depois do divertidíssimo surto technicolor de comédia desconfortável que é o primeiro ato, Barbie começa a mostrar seus interesses neste ousado e bagunçado segundo ato, um no qual Gerwig não resiste levantar todos os temas possíveis — de Barbie como um estereótipo ou como companhia divertida para brincadeiras à desigualdade entre homens e mulheres, sem esquecer do metacomentário sobre capitalismo quase necessário para podermos engolir esse tipo de filme.
Dentro dessa mistura, o roteiro de Gerwig e de Noah Baumbach opta por uma sucessão de piadas — algumas geniais, algumas cansadas. Naturalmente, isso significa que Barbie sempre é capaz de arrancar uma risada, mas o humor também serve como rota de fuga para um filme mais do que contente em levantar perguntas interessantes mas cuja melhor resposta é, muitas vezes, um dar de ombros sorridente. Em particular, ao lidar com o legado de uma boneca que simultaneamente diz para garotas que elas podem ser qualquer coisa, mas também estabelece um suposto modelo de imagem. É difícil não desejar que Gerwig tivesse a liberdade de se aprofundar com a plenitude de sua capacidade como cineasta, provavelmente travada devido ao formato. Essa é, afinal, uma máquina de milhões de dólares.
Se o tratamento de Barbie, o conceito, está aquém do ideal, é na Barbie como personagem onde os verdadeiros talentos de Gerwig e Robbie surgem. Se por um lado Ken vira um ótimo alívio cômico, abastecido pela capacidade ímpar de Gosling de parecer um pateta e por números musicais genuinamente incríveis, Barbie oferece um coração.
Encantadora, Robbie nunca foi tão estrela de cinema como se mostra aqui. Divertida na ingenuidade e vulnerável no descobrimento, ela encontra uma parceira ideal em Gerwig, que pode até se perder nas discussões intelectuais, mas jamais esquece de tratar a mulher (ou boneca) no centro de suas histórias com todo o cuidado. O arco da Barbie protagonista é, em diversos sentidos, um trabalho de humanização, e aqui fica claro por que alguém cujo currículo é tão voltado para o realismo de baixo orçamento decidiu abrir essa caixinha de brinquedos.
Humanizar uma boneca pode até ser uma tática de megacorporações para nos fazer gastar mais dinheiro, mas dentro do contexto deste longa-metragem, e nas mãos de artistas tão talentosas, Barbie faz esse salto da forma mais convincente possível. Para os mais céticos, a proposta em si — tratar o plástico como carne-e-osso — é inerentemente falha. Mas diante do tocante final do longa, quando a própria natureza humana é encenada como uma jornada que, por mais bela que seja, sempre leva à morte, Gerwig e Robbie argumentam que o autêntico é sempre melhor que o artificial.
Talvez isso seja a própria mensagem da brincadeira. Greta Gerwig vê beleza numa criança trazendo a boneca à vida com um pouco de imaginação não por que isso torna o objeto valioso, mas porque revela uma pessoa capaz de conferir significado. No caso de Barbie, ela vê meninas e mulheres, completas e interessantes. A boneca simplesmente revela o valor de quem a tem.