
Beau tem Medo, e depois do novo pesadelo de Ari Aster, você também terá - Crítica do Chippu
Em seu mais bizarro filme até hoje, diretor de Hereditário e Midsommar coloca Joaquin Phoenix em situações inacreditáveis

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Concebido no cruzamento entre a Avenida Franz Kafka e a Estrada Charlie Kaufman, o mais novo filme de Ari Aster, Beau tem Medo, é simultaneamente o mais distinto de seus três longas-metragens, caindo muito mais no humor e no psicodélico do que ambos Hereditário e Midsommar, e também uma espécie de declaração-mor por parte do artista sobre os temas que parecem não tanto lhe interessar, mas sim assombrar. Num dos maiores exercícios de um cheque em branco do cinema norte-americano neste século, Aster descarrega suas ansiedades e medos.
Enquanto o faz, ele aponta para si mesmo e faz as mais sombrias piadas possíveis, tanto nos oferecendo o mais nu vislumbre de como sua cabeça perturbada funciona quanto deixando claro o quanto ele acha tudo isso patético. O quanto ele se acha patético. No que está destinado a ser um dos mais divisivos lançamentos do ano (já chamado por alguns de assassino de carreira, pouco importando que o próximo projeto de Aster já está no forno), o diretor se aproveita de toda a liberdade oferecida pela A24 para fazer algo que testará até os mais fervorosos seguidores do badalado estúdio.
Beau (Joaquin Phoenix) vive, provavelmente, em nosso mundo. Mas nós observamos o universo a sua volta por seus olhos tingidos de pânico e temor. Apesar de ser o herdeiro da megacorporação gerida por sua controladora mãe Mona (vivida em diferentes idades por Zoe Lister-Jones e Patti LuPone), ele mora sozinho num apartamento acabado, no pior bairro da cidade de Corrina, no estado de Corrina. A metrópole fictícia é basicamente como os mais ferrenhos apoiadores de Bolsonaro acreditam que o Brasil será se o PT realizar seu grande plano; Beau precisa entrar no prédio correndo para não ser assaltado ou assassinado por um dos vários criminosos rondando sua rua, e seus problemas pioram quando, enquanto fazia as malas para visitar a mãe, sua chave é roubada. Eventualmente todos os “vizinhos” invadem o prédio. Tudo isso, porém, não é nada comparado ao desafio que Beau enfrenta ao ligar para Mona e dizer que, por conta dessa confusão, ele perdeu o voo.
Seja por manifestar uma mísera gota de coragem, ou por temer demais a alternativa, Beau insiste na viagem. Se for o jeito, ele vai andando. Beau, então, parte numa espécie de jornada do herói invertida onde cada um dos atos desse tão conhecido formato narrativo é recriado da maneira mais bizarra e perversa possível, deixando de lado qualquer crescimento ou aprendizado em favor de colocar nosso protagonista em situações maquiavélicas, cada vez mais criativas e, por vezes, incompreensíveis. Nesse sentido, as preferências da A24 por histórias de realização pessoal, superação de traumas e aceitação são jogadas fora. Aster vai na direção oposta. Estamos testemunhando um dos maiores shows de humilhação possível.
Se Beau tem Medo é “sobre” algo, ele é sobre a culpa gerada pela dependência com alguém abusivo. Aster pode estar operando em um território mais surreal, mas ele ainda planta as mesmas coisas. Não é preciso ler explicados no Reddit para sacar como Beau foi traumatizado pelos métodos de criação da mãe, como ela frustrou suas tentativas de independência e fez uma lavagem cerebral para que ele passasse a acreditar que cada uma de suas angústias é realidade: Sim, o mundo é tão ruim e deturpado quanto parece. Sim, todo mundo acha você ridículo. Sim, você é a razão da infelicidade da sua família. E sim, você tem razão de ter medo. O que aconteceria se cada aspecto de um filme, de como Fiona Crombie insere uma impressionante quantidade de piadas visuais no cenário às sequências animadas por Jorge Canada Escorihuela para nos lançar ainda mais afundo nesse psique destruído, fossem criados pensando em reproduzir essa sensação de responsabilidade desesperadora?
A clareza temática, porém, não servirá como um códex através do qual é possível decifrar todos os mistérios de Beau tem Medo. Nenhuma interpretação explicará todo comportamento, toda visão, todo acontecimento, e a graça está nisso. A relutância de Aster em “explicar” suas ideias é bem-vinda e condiz com sua abordagem; seu propósito aqui não é encorajar-nos a observar Beau tem Medo e suas facetas como grandes metáforas para a miríade de complexidades no relacionamento do personagem com a mãe, com a possível amante Elaine Bray (uma hilária Parker Posey) ou com seu terapeuta sem nome (o sempre bem-vindo Stephen McKinley Henderson).
A relação conturbada com a mãe, sem dúvidas, existe como uma porta de entrada para entender o texto, mas Aster parece igualmente determinado a comentar sobre a ansiedade constante sob a qual vivemos, o peso tremendo de uma vida solitária, a dependência moderna de remédios como uma espécie de solução mágica vendida pela big pharma e até como celulares nos colocam num estado de distanciamento pessoal e sob eterna vigilância. Se isso tudo soa incrivelmente cabeça, é porque é. Mas, sabiamente, Aster bola o humor como a água que nos ajudará a engolir esse medicamento.
Encenado como uma tragicomédia, Beau tem Medo dificilmente arrancará risadas em alto e bom de quem ousar assistí-lo (a não ser que você, como eu, tenha um senso de humor peculiar), mas seu diretor jamais te deixará esquecer do quanto tudo isso é absurdo. O ar cômico impede o filme de cair num território pretensioso. Aster tem, claramente, muito para dizer com sua versão de O Mágico de Oz com tons de Show de Truman, mas ele também entende, talvez acima de tudo, que está fazendo um filme sobre um virgem de 60 anos criando coragem para visitar sua mãe.
Isso não quer dizer que Aster não leve o filme a sério, e a escalação de Phoenix, cuja atuação é surpreendentemente contida, corrobora com isso. Se em O Mestre e Coringa o ator recebe a missão de deixar maneirismos e idiossincrasias regirem o tom de suas entregas e fisicalidade, aqui ele pende para a normalidade. Isso não quer dizer que Beau é um cara comum, mas sim que há uma humanidade simples em seu cerne. Seu andar, olhar e falar deixam claro seu estado apavorado. Graças a Phoenix, seu pavor é compreensível. Em contrapartida (e talvez como fruto disso), alguns coadjuvantes sofrem por não possuírem essas dimensões extras. Depois de uma empolgante primeira hora que é essencialmente uma sinfonia de agonias cômicas, Beau faz alguns interlúdios. O primeiro, na casa do casal Grace (Amy Ryan) e Roger (Nathan Lane), freia o ritmo outrora frenético da obra e reflete um problema dentro da elaboração de Aster.
Eles são caricaturas. E caricaturas funcionam até certo ponto, mas conforme passamos mais tempo os observando, menos eles ficam interessante. As melhores sacadas e brincadeiras de Beau tem Medo existem na rápida sucessão de conceitos apresentados de forma inesperada, no povoar de cada ambiente com easter eggs que não referenciam outros mundos e sim colorem este, e no uso de figuras como Phoenix para nos guiar, mesmo que ele não saiba para onde vai.
LuPone é, de longe, a melhor dos personagens auxiliares. Quando ela finalmente aparece em tela, nossa concepção de Mona não foi só informada por suas ligações com Beau ou pelas formas como seu filho expressa as memórias sombrias de sua juventude (Beau, em flashbacks, é vivido por Armen Nahapetian, cujo rosto parece ter sido moldado por Deus pensando exatamente nesse papel), como também pelos diversos detalhes tenebrosos dessa viagem. LuPone precisa estar à altura disso. Num tour-de-force imediato, ela justifica tudo — se ela é o sol e a lua da Terra de Beau, não é de surpreender ele seja assim.
Beau tem Medo encerra seu pesadelo sem procurar satisfazer qualquer necessidade por um arco narrativo convencional, como se Aster propositalmente quisesse frustrar sua audiência. Numa jogada meio metalinguística, ele transforma todo o filme num teste no qual Beau fracassou desde que nasceu (e, ah, seu nascimento é algo para se ver). Nunca houve esperança para ele, e tampouco há em sua última tarefa. Nesse jogo injusto, Beau perde independente de reencontrar sua mãe ou não. Ele perdeu no minuto em que ela lhe deu à luz. De certa forma, isso é mais assustador do que possessões ou seitas.
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