Emilia Pérez se perde no tom desequilibrado e personagens esquecidas

Emilia Pérez se perde no tom desequilibrado e personagens esquecidas

O filme de Jacques Audiard tem Zoe Saldaña e Selena Gomez no elenco

Guilherme Jacobs
20 de maio de 2024 - 6 min leitura
Notícias

Para seu crédito, Emilia Pérez é um filme que nunca faz o previsível. Do primeiro ao último frame, o novo longa de Jacques Audiard se comporta de forma tão inesperada que é praticamente impossível perder o interesse nele, ainda que muitas de suas surpresas saiam pela culatra. É fascinante, e em alguns momentos genuinamente divertido, acompanhar o desdobrar de algo incapaz ou desinteressado em manter a coerência tonal. Eventualmente, essa energia se dissipa e ficamos apenas com algo mal-sucedido. Mas até chegar lá? É difícil até piscar.

Tudo começa com o visual sério e sombrio com o qual o diretor de fotografia Paul Guilhaume aponta a câmera para Rita Mora, a advogada vivida por uma dedicada Zoe Saldaña. O prólogo do filme nos mostra a dificuldade de Rita em trabalhar defendendo homens abusivos, claramente culpados de matar suas mulheres, e de lidar com chefes prontos para tomar todo o crédito por sua pesquisa, sua estratégia e até seus discursos. Então, toda essa frustração é encaminhada para um número musical, o único genuinamente bom de toda a obra, enquanto Rita canta e dança no meio de uma feira mexicana onde, por alguma razão, ela vai imprimir os documentos do caso.

Felizmente para Rita, uma figura muito rica reconhece seu trabalho. Seu nome é Juan “Manitas” Del Monte (Karla Sofía Gascón), um líder de cartel que, em suas palavras, “quer ser uma mulher,” e busca a ajuda da advogada para encontrar o médico e o lugar certo para realizar a operação, e então desaparecer da face da terra e iniciar uma nova vida. Diante dos milhões propostos, Rita aceita.

É preciso admitir. Essa premissa é um gancho excelente e inusitado. A ideia de um suspense de crime queer onde o maior bandido do México, apresentado de maneira ultra masculina, se torna um ícone trans não é nada convencional, e por si só gera grande interesse. Amarrar tudo isso num musical, porém, se revela como a primeira das várias escolhas erradas de Audiard. O problema não reside na escolha do musical, mas na execução disso. De músicas e coreografias pobres e escassas na imaginação, Emilia Pérez tropeça em si mesmo constantemente, e nunca consegue encaixar essas sequências dentro de sua tapeçaria.

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Toda a linguagem visual de Audiard sugere uma preferência pelo verossímil, pelo pé-no-chão. Isso significa que os toques fantasiosos naturais aos musicais parecem sempre inadequados ou fora de lugar, e a progressão do roteiro agrava, e muito, isso. Os primeiros 45 minutos de Emilia Pérez colocam Rita como protagonista, e concluem com a cirurgia. Essa é, apesar de alguns tropeços, a melhor parte do longa, muito pelo talento de Saldaña de deixar a dor e os sonhos da advogada sempre perceptíveis no olhar cansado, voz rouca e expressões marcantes. Por isso, é frustrante quando Audiard a joga de lado.

No resto de sua duração, Emilia Pérez vira, respectivamente, um drama sobre aceitação transsexual, um filme sobre uma figura criminosa que tenta solucionar os problemas que causou (toda a maldade de Manitas está milagrosamente ausente em Emilia, exceto quando o filme precisa dela), uma novela familiar e uma história de máfia com direito a tiroteio no clímax. É uma montanha russa que seria bem-vinda se Audiard conseguisse nos convencer de qualquer coisa. O tom sai totalmente de seu controle. Cada uma dessas viradas nos atinge do nada, e nunca parece merecida ou intencional.

Semelhantemente, a maior parte do desenvolvimento dos personagens é embasada nos números musicais, e como estes raramente funcionam, é difícil dar razão às mudanças. A motivação para o principal acontecimento do filme, quando Manitas explica por que quer a cirurgia, vem numa sequência mal cantada e mal encenada, e por isso não há impacto quando a mesma enfim é realizada. Emilia, então, decide usar seu dinheiro para fundar uma ONG que ajuda familiares a encontrar seus entes queridos desaparecidos por conta das ações dos cartéis, e o filme jamais questiona ou explora sua recém-descoberta vontade de ajudar. É preciso, então acontece.

Mas ninguém é mais injustiçada que Jessi, a personagem de Selena Gomez. Esposa de Manitas, ela passa anos no exílio acreditando que seu marido morreu para depois retornar ao México para viver com uma “prima” do falecido chamada Emilia Pérez, que esconde o passado de sua ex-mulher e passa a cuidar dos filhos de perto. Quando Jessi decide ter um novo casamento e se mudar, as tendências violentas de Manitas voltam de forma repentina e convenientemente, afinal Emilia Pérez, o filme, precisa gerar um drama barato para nos levar à conclusão sangrenta supramencionada.

A verdade é que quem mais perde com as viradas bruscas do filme e a falta de resposta são os personagens. Emilia Pérez é apenas o que o roteiro pedir, Rita Mora é descartada, Jessi sequer é tratada como uma humana. Há uma ótima história, em algum lugar, dentro desse filme. Audiard, contudo, não sabe contá-la.

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