Duna 2 entende a principal tensão do livro: Paul não é um herói

Duna 2 entende a principal tensão do livro: Paul não é um herói

A relutante transformação do protagonista num líder político e religioso é parte essencial do filme

Guilherme Jacobs
29 de fevereiro de 2024 - 8 min leitura
Notícias

Nas semanas anteriores ao lançamento de Duna: Parte 2 nos cinemas, o diretor Denis Villeneuve fez questão de ressaltar algumas vezes que Paul Atreides, o protagonista deste épico de ficção-científica, não é um herói. É uma declaração que pode pegar quem só viu o primeiro Duna, onde há uma jornada familiar de amadurecimento e responsabilidade, de surpresa, especialmente com um galã da nova geração (Timothée Chalamet) em cena. Leitores do clássico de Frank Herbert, porém, reconhecem essa como a principal tensão da história.

Agora, Duna: Parte 2 está aqui, e é justo dizer que Villeneuve e seu colega de roteiro Jon Spaiths não deixam a transformação de Paul em algo mais perigoso às sombras, como no filme anterior. Pelo contrário, a ideia de que Paul Atreides pode ser um messias predestinado (Kwisatz Haderach, Mahdi, Lisan al-Gaib, e assim vai) é tratada na adaptação como um destino aterrorizante, algo a ser evitado, um destino terrível. É comum ouvir comparações de Duna com Star Wars e O Senhor dos Anéis, mas se nessas fantasias ser O Escolhido representa a salvação, em Arrakis não há redenção alguma. Essa ascensão representa o começo de uma guerra santa.

Claro, um dos méritos de Duna (livro e filme) é deixar passível de interpretação se Paul é, de fato, um messias, mas o próprio protagonista reconhece o papel das feiticeiras Bene Gesserit, e em particular sua mãe Jessica (Rebecca Ferguson) na manipulação cuidadosa das massas, preparando o terreno no coração de um povo oprimido e desesperado por libertação. Combine isso com os poderes de presciência herdados na linguagem sanguínea e a dose certa de especiaria para abrir a mente, e você tem uma receita explosiva.

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Há uma palavra ausente no filme, mas frequentemente usada por Herbert no livro na hora de descrever as consequências do ato de Paul: Jihad. Seu sumiço na adaptação é compreensível, e particularmente dado os eventos dos últimos meses no Oriente Médio, dá para imaginar todo produtor louvando Muad'Dib por isso. Seu uso pelo autor, porém, é revelador. Quer sua interpretação seja hoje considerada insensível ou não, a intenção é clara; Herbert quer trazer a mente o tipo de líder político e religioso que inspira seus seguidores mais ferrenhos a entregarem e tirarem vidas por uma causa santa, não o redentor gracioso pregado pelos cristãos reformados ou um padre imputando consciência culpa católica. Para ele, diferente de uma figura espiritual vinda dos céus, profetas construídos são falsos messias, e capazes de grande destruição.

Não há como fugir da associação entre a ficção de Herbert e a realidade dos extremistas do Islã (ênfase em extremistas). Dos figurinos ao ambiente desértico, Duna quer trazer um cenário bem específico à mente, e por isso as tentativas de Villeneuve de fugir dos aspectos mais complexos dessa religião em particular acabam prejudicando o filme. Cria-se um comentário ousado, mas genérico, sobre como os poderosos podem usar a fé das pessoas para levá-las à violência. Novamente, é fácil entender por que em 2024, após décadas de destrato dos crentes em Maomé no entretenimento ocidental, Villeneuve prefira deixar de lado a comparação direta. Não precisamos de outro blockbuster americano com estereótipos de muçulmanos e árabes. No lugar de se aprofundar nessa temática tão polêmica, porém, o cineasta prefere identificar o custo pessoal que assumir um posto sagrado como esse cobra de quem o toma.

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Com uma ajuda essencial de Chalamet e Zendaya, isso é feito através do relacionamento de Paul e Chani. Durante boa parte do longa, vemos Paul resistindo a ida para o Sul, onde estão as tribos Fremen mais fundamentalistas e, portanto, mais dispostas a segui-lo em batalha caso ele seja, de fato, esse salvador profetizado há séculos. Quando ele faz essa escolha, motivado apenas pela visão do caminho alternativo onde o uso das bombas nucleares custam a vida de sua amada, o filme trata o ato como uma decisão necessária, mas profundamente trágica.

Assim, o heroísmo de Paul é removido não só por como Villeneuve pinta seu status de liderança messiânica, mas principalmente por que uma personagem tão essencial sofre, no nível mais íntimo possível, ao perder um amante e ganhar um profeta.

E isto, como leitor, eu preciso elogiar. Para explicar mais, é preciso entrar em SPOILERS do fim de Duna (livro), e consequentemente de Duna: Parte 2. O texto continua após o trailer abaixo.

Chani já é uma das personagens principais da obra, mas seu papel é enriquecido por Zendaya — talvez a maior estrela de sua geração — e Villeneuve usa essa presença ampliada para partir nossos corações quando Paul propõe se casar com a Princesa Irulan (Florence Pugh) e assim justificar sua usurpação do trono. O romance entre Chani e Paul é o fio condutor através do qual entramos numa história de temas grandiosos e ambientação distante, e muito por conta do carisma natural dos dois atores, o sacrifício desse amor se torna uma tragédia.

Em sua melhor decisão na hora de traduzir a página para a telona, Villeneuve nos nega o conforto oferecido por Herbert com o discurso de Jessica, uma mulher que nunca casou oficialmente com o Duque Leto (Oscar Isaac), para Chani nas linhas finais de Duna:

"Pense nisto, Chani: aquela princesa terá um nome, e no entanto receberá menos que uma concubina, nunca conhecerá um momento de carinho do homem ao qual está ligada. Enquanto nós, Chani, nós que carregamos o título de concubina... a história nos chamará de esposas."duna-2-chani

Duna: Parte 2 posiciona Chani e Jessica como forças adversárias, a primeira puxando Paul para a simplicidade da vida no deserto e a segunda movendo as peças para colocá-lo no topo do Imperium, e por isso não há saída para a personagem de Zendaya quando Paul faz sua manobra política para assumir o título de Imperador. Seria impossível ouvir essas palavras vindas da boca da Reverenda Madre. Sem elas, o peso da vitória de Paul é jogado em cima de sua querida. Em termos de capturar o principal conflito do livro, a escolha impossível entre um mundo sem Chani e um mundo sem Jihad, esse é o maior feito de Villeneuve. Toda emoção envolvendo Paul e Chani é potencializada pelos atores e por essas mudanças.

Nisso, e talvez apenas nisso, pode-se argumentar que filme de Villeneuve supera o texto original de Herbert. Por mais que Paul profetize que Chani eventualmente o entenderá, e por mais que um terceiro filme venha, adaptando Messias de Duna e continuando a relação de Paul e Chani, o momento é encenado como uma traição para a garota, e a tristeza ensaiada por Herbert mas diminuída pela ambiguidade de sua conclusão é potencializada por Villeneuve. Quando Duna: Parte 2 termina, estamos com Chani, e ela está sozinha.

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