Sundance: Against the Tide testa os limites de documentário e ficção em envolvente história de pescadores indianos - Crítica do Chippu

Sundance: Against the Tide testa os limites de documentário e ficção em envolvente história de pescadores indianos - Crítica do Chippu

Documentário de Sarvnik Kaur usa linguagem de ficção para nos apresentar a um mundo profundamente real em Mumbai

Guilherme Jacobs
25 de janeiro de 2023 - 7 min leitura
Notícias

FESTIVAL DE SUNDANCE: A primeira cena de Against the Tide, o envolvente documentário da cineasta indiana Sarvnik Kaur, mostra o nascimento do filho de Rakesh. A última, um ano depois, nos mostra o nascimento do filho de Ganesh. Ao longo dos doze meses entre o natal desses bebês, o filme nos conta a história dos dois homens, ambos Koli — povo pescador de Mumbai — e ambos lutando para conseguir sobreviver em meio a crises ambientais e econômicas. Quando os conhecemos, Rakesh e Ganesh são colegas de profissão e melhores amigos, mas esse relacionamento, assim como seu pão diário, está prestes a passar por várias provações.

Filmado e muitas vezes editado como ficção, Against the Tide testa os formatos tradicionais de documentários para nos introduzir a um mundo profundamente real da maneira mais cinematográfica possível, enquadrando as pessoas (personagens?) dessa narrativa com closes, campos-contracampos, iluminação e composições que estariam em casa na adaptação dessa obra com atores famosos. O efeito, algumas vezes, levantará perguntas. O quão natural alguém consegue ser em algo tão encenado? O quanto os documentaristas deixaram as conversas fluírem sem interferir? O quanto eles foram guiados?

Essas perguntas, enquanto inevitáveis, são asfixiadas pelo impacto das escolhas de Kaur e do diretor de fotografia Ashok Meena, que sabiamente deixam Against the Tide se desenrolar puramente através dos pescadores — não há narração, entrevistas ou texto em tela. É difícil culpá-los. As vidas de Rakesh e Ganesh parecem feitas para o cinema. Não deveriam elas, então, serem apresentadas com a linguagem do cinema?

Rakesh e Ganesh são ambos pescadores, mas suas realidades são diferentes. Rakesh é pobre ao ponto de não ter banheiro em casa. Quando sai para pescar, ele está sozinho num pequeno barco feito para regiões mais rasas e rochosas do mar indiano, e encarar os iminentes problemas de saúde de seu recém-nascido se provará um desafio superior ao poder da natureza. Já Ganesh é dono de um negócio de porte médio. Seu barco de pesca vai até o alto mar com redes enormes para pegar dezenas, até centenas, de peixes, e o custo disso é enorme. Enquanto se prepara para ser pai, ele precisa tentar se manter financeiramente estável. Seu negócio está frequentemente ameaçado por competidores, como navegações chinesas, e novas técnicas, como o uso de LEDs para atrair os peixes, algo ilegal na Índia.

Against the Tide estabelece a diferença entre os dois tipos de pescas com duas sequências visualmente marcantes. Quando acompanhamos Ganesh, Kaur e Meena colocam a câmera embaixo da água e transformam as redes gigantes em padrões e texturas de outro mundo, paredes entrelaçadas balançando de maneira hipnótica no oceano enquanto a vida marinha (e, inevitavelmente, lixo) é capturado.Com Rakesh, que usa as milenares estratégias de acompanhar a maré, lua e clima, o processo é mais visceral. Em uma das cenas com o pescador mais pobre, o observamos agachado na ponta de seu barquinho, resistindo ao frio da chuva pesada enquanto balança nas ondas violentas.

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A grande conquista do filme é como essas duas vidas diferentes são conectadas de maneiras invisíveis. O uso dos LEDs, por exemplo, é revelado não só como uma técnica banida pela lei, como uma violação das tradições dos Koli. Quando Rakesh explica por que não tem um barco maior para seu amigo, ele justifica seu estilo de pesca como algo coerente com sua realidade econômica e com seus dogmas, e tenta abrir os olhos do colega para as ligações do ecossistema local. Quanto mais barcos usarem as luzes brilhantes para obter cargas maiores, menos sobrará para pessoas como ele. Ganesh, entretanto, não vê outra opção a não ser se render ao futuro.

É um problema sem aparente solução, algo destinado a afetar os dois. Sua amizade, porém, sobrevive. Através de vários longos diálogos — normalmente junto ao fogo, comendo e bebendo durante a noite — Rakesh e Ganesh colocam o papo em dia, falam de seus desafios particulares, e debatem a situação da pesca na Índia. Se as sequências a bordo são como os grandes momentos de ação, essas horas quietas servem para nos revelar sentimentos, ideias e dúvidas. A fantástica montagem de Atanas Georgiev e Blagoja Nedelkovski é essencial para unir as raízes desses dramas paralelos e mostrar o quão semelhantes são seus dilemas, tornando esses encontros como cápsulas de seus objetivos, preocupações e, talvez mais importante, suas cegueiras.

A poluição ambiental está presente em todo o filme. Nas ruas, montes, quintais e, claro, no mar. Mas nem Rakesh, nem Ganesh, comentam sobre a quantidade de lixo acompanhando suas pescadas, e enquanto se desesperam na busca por culpados por trás do sumiço dos peixes, apontando dedos para todo lado, eles esquecem de olhar para aquilo que eles mesmo criam. Talvez a interferência externa em Against the Tide venha após uma pesca fracassada de Ganesh, sua primeira com LEDs, quando Kaur deixa a câmera descansar no homem, frustrado e fumando. Então, ele joga o cigarro nas águas.

Assim, Against the Tide termina sem oferecer grandes comentários sobre a vida política ou social de Mumbai, sem examinar a fundo se vale ou não a pena quebrar tradições em nome do lucro, sem nos atualizar como estão Rakesh e Ganesh agora, meses depois do último corte. Mais voltado para o cotidiano, para o viver da vida em si, o filme termina com a poderosa sensação de que a história desses homens não pode ser resolvida pelo cinema, mas certamente é digna de sua atenção.

4/5

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