Sundance: Grande vencedor do Festival, Mil e Um é um retrato genuíno da gentrificação

Sundance: Grande vencedor do Festival, Mil e Um é um retrato genuíno da gentrificação

Filme de A.V. Rockwell traz à vida história de mãe e filha em Nova York

Guilherme Jacobs
30 de janeiro de 2023 - 6 min leitura
Notícias

FESTIVAL DE SUNDANCE: Nos primeiros minutos de Mil e Um, o belo e tremendamente verdadeiro filme de A.V. Rockwell no Festival de Sundance (onde venceu o grande prêmio), você pensa que já sabe tudo. Inez de La Paz (Teyana Taylor) acabou de sair da prisão após um ano, e enquanto tenta colocar seu negócio como cabeleireira para funcionar, ela toma a desesperada e ousada decisão de “sequestrar” seu filho de seis anos de um lar adotivo, como aquele onde ela mesma cresceu. O jovem Terry (Aaron Kingsley Adetola) estará melhor em suas mãos, não nas da cidade.

Com pai ausente, muita timidez e ressalvas até com a mãe, Terry não fala muito, mas deixa claro querer ir com Inez. Assim, no começo dos anos 1990, os dois começam a se esconder da prefeitura de Nova York, encontrar um lugar para morar e começar a desenvolver sua vida e família, uma jornada de mais de uma década (Terry com 13 anos é vivido por Aven Courtney, e com 17 por Josiah Cross) encenada por Rockwell com graça, honestidade e autenticidade, escapando do esperado e evitando decisões previsíveis. Desafiando expectativas criadas por clichês desse tipo de história, a diretora nos insere num mundo profundamente real, onde cada apartamento parece realmente habitado, cada esquina da metrópole explode com vida (até o momento em que isso acaba), e cada personagem é preenchido por seu ator com tremenda emoção.

Inez é o foco de Rockwell durante o primeiro, e menos interessante, dos três períodos de Mil e Um. Com personalidade forte, a nova-iorquina é teimosa, trabalhadora, dedicada e nem sempre compreensível. Para vivê-la, Taylor recebe a demanda de um tour de force no qual todo minuto transpira com a frustração palpável gerada pelas desigualdades impostas por sistemas que Rockwell reproduz, desde o princípio, como forças invisíveis e impiedosas, e como consequência dessa dureza, amar Terry nem sempre é o mais fácil. Taylor é, repetidamente, capaz de assumir essa tarefa. Seu trabalho se mostra essencial. O começo do filme depende inteiramente dela, já que o jovem Adetola — sem dúvidas intencionalmente — é mais um quadro em branco, e o roteiro da própria diretora segue caminhos mais esperados nesse tipo de obra.

Mas então, o pai de Terry aparece. Desde seu primeiro instante em cena, William Catlett desarma o que esperamos de Lucky, um homem com tantas cicatrizes quanto charme, e pouco a pouco convence a seu filho (e, de maneira inseparável, a nós) de seu caráter. Armado com um olhar macio, mas a voz de um trovão, Catlett lentamente se torna a ponte construída por Rockwell para o destino de Mil e Um, um retrato mais complexo e genuíno dos efeitos da gentrificação, e das escolhas feitas pelas pessoas afetadas por essa triste realidade para sobreviver.

Nesta reconstrução da virada do século, Nova York é uma presença inescapável. Inez, Lucky e Terry precisam aprender, em tempo real, a navegar uma cidade tão cheia de atrativos quanto de armadilhas onde famílias pobres, e frequentemente negras, são expulsas de suas casas por homens com um sorriso no rosto e uma faca escondida nas costas. Rockwell bebe de sua própria experiência na cidade que não dorme para informar os dilemas e sonhos dos três protagonistas, e Mil e Um parte nosso coração exatamente ao mostrar quais destes eles não vão conseguir superar ou realizar.

Assim, o filme ganha o caráter de um épico. Aliando as mudanças dos personagens com as mudanças por eles enfrentadas, Mil e Um traz à vida cenários tão detalhados pelas interações entre seus vários habitantes quanto pelo design de produção preciso de Sharon Lomofsky, através do qual entramos numa cápsula do tempo datada por videogames, roupas e música. Contrastando e complementando esse processo, a fotografia efêmera de Eric Yue não nos deixa esquecer da finalidade de todas essas coisas, enquanto a trilha sonora frenética de Gary Gunn mistura jazz e R&B para realçar a necessidade de improviso e ritmo na luta cotidiana.

Ambos Courney e Cross — interpretando, respectivamente, Taylor no começo da adolescência e no princípio da juventude — viram nossos portais e guias, tanto permitindo nossa entrada nesse mundo constantemente imprevisível quanto nos revelando, um por um, seus mistérios. Enquanto o garoto amadurece, a diretora parece fazer o mesmo. Depois de tropeçar com a velocidade do primeiro ato, quando o escopo da história lhe escapa, sua direção toma mais as rédeas desse trem em movimento ininterrupto, e sua escrita alcança a natureza multifacetada de suas criações.

O feito é tanto que, quando Mil e Um passa por acontecimentos mais orquestrados, os momentos jamais transformam Inez, Taylor e Lucky em marionetes. Rockwell se faz merecedora do drama, porque evita usá-lo como muleta nas vidas que filma. Pelo contrário, ao definir tão bem as diversas personalidades vivendo nessa selva de pedra, um ambiente dinâmico e duro, ela dá permissão ao drama para surgir como o fruto dessa poderosa coisa chamada vida.

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