Gêmeas: Mórbida Semelhança é uma brilhante resposta à obra-prima de Cronenberg em forma de série - Crítica do Chippu

Gêmeas: Mórbida Semelhança é uma brilhante resposta à obra-prima de Cronenberg em forma de série - Crítica do Chippu

Estrelada por Rachel Weisz, remake do filme de 1988 da Amazon é uma das melhores séries de 2023

Guilherme Jacobs
17 de abril de 2023 - 11 min leitura
Notícias

Dizem pra você não querer saber como a salsicha é feita, porque o processo é nojento e perturbador. Em Gêmeos: Mórbida Semelhança, David Cronenberg entende que os feitos miraculosos da medicina e o ápice prazeroso do sexo são alcançados através de carnalidade; uma mistura de agressão e sangue.

O design de produção de Gêmeos: Mórbida Semelhança traz essa verdade dolorosa à vida sendo o oposto do calor corporal humano. Cronenberg e sua frequente colaboradora Carol Spier criam um mundo gelado e cinzento de cimento e aço, onde todo ambiente interno parece vindo de um futuro sem emoções e todo exterior revela um brutalismo onde a presença imponente de cada prédio suga a vida da natureza, deixando apenas árvores mortas e grama dessaturada.

Mórbida Semelhança tem o visual oposto do seu interesse central, e assim — no contraste de pele e metal — cria a dinâmica de algo violando o interior, entrando onde não devia. Cronenberg reconhece o quão bizarro é o ato de uma cirurgia, ou da penetração. Há uma violência em ambos. Nesse contexto, a presença de gêmeos ginecologias oferece ao diretor a maneira perfeita de encenar uma história sobre o que acontece quando alguns corpos tem partes demais, e outros partes faltando. Seja uma deficiência impedindo a gravidez, ou literalmente uma pessoa inteira como "membro extra", neste caso os irmãos Elliot e Beverley Mantle (Jeremy Irons).

Cronenberg constantemente nos mostra os médicos, homens ,invadindo corpos de mulheres enquanto abraça o desconforto inerente com o furo e o corte em nossa carne. Coloque a câmera numa cirurgia, ou às vezes num mero exame, e você verá imagens dignas de pesadelos. Não é daí que se baseia o horror corporal? Nessa sincronia perfeita de sangue e salas de operação, a entrada das drogas que eventualmente causam a queda dos gêmeos parece tão exterior, tão fora da conversa entre o contato de peles com lâminas, ou com a pele de outrem. Drogas, claro, são um agente invasor. Sua presença no filme precisa refletir isso. Algo que não devia estar lá.

Ao mesmo tempo, o diretor deixa espaço para a ideia de que Elliot (cujo apelido é Ellie) e Beverley (nome de mulher) talvez, no fundo, não queiram estar em seus corpos. Será seu fascínio pela fisicalidade feminina fruto de jogo de poder, de domínio sexual? Ou de um conforto maior em vênus? A abordagem do diretor permite ambas interpretações, mas se a vontade de habitar a feminilidade ali é apenas uma teoria, na fantástica série Gêmeas: Mórbida Semelhança, ela se torna realidade.

Criada por Alice Birch e estrelada pela fenomenal Rachel Weisz nos papéis das agora mulheres Mantle, a serie que estreia em 21 de abril no Prime Video é menos um remake da obra de Cronenberg e mais uma resposta ao longa-metragem. Em certos pontos, ouso dizer, Birch ativamente discorda do diretor. Não há depreciação do original, mas grande parte do sucesso da nova adaptação vem de seus questionamentos.

A história é largamente a mesma. Elliot e Beverley Mantle (sim, os nomes são mantidos, e agora uma delas tem nome de homem) são gêmeas e ginecologistas brilhantes cujo desejo pelo êxito medicinal e pela revolução da saúde da mulher tanto lhes transforma em celebridades quanto anuncia sua possível decadência. Se no filme, os Mantles de Irons já são vistos com sua própria clínica, livres para trabalhar fora das normas da profissão, aqui vemos as irmãs trabalhando num hospital regular, conquistando os fundos para se tornarem independentes, e indo a fundo em questões levantas, mas não totalmente exploradas por Cronenberg.

Onde Birch, Weisz e companhia parecem mais interessadas, porém, não é em expandir o longa-metragem e sim colocá-lo em novo contexto. Por que, por exemplo, as imagens envolvendo a vulva devem gerar incômodo? Por que o parto tantas vezes é fonte de terror e suspense? Por que o interior genitália feminina é tão rotineiramente abusado, em mais de um sentido?

Não entendam errado. Há momentos intensos, viscerais e agoniantes. Mas assim como há uma perceptível harmonia entre os temas de Cronenberg (com a exceção intencional das drogas), Birch alcança uma construção semelhantemente simbiótica encarando a premissa com novas perspectivas.

O visual, por exemplo, é menos anestesiado nos primeiros dos seis episódios, quando Beverley e Mantle estão fazendo seu melhor para cuidar de pacientes* em meio à estrutura hospitalar tradicional aquém do ideal, e procedimentos que vão desde a realização de partos até o exame da vagina são filmados pelos diretores (um talentosíssimo grupo que inclui Sean Durkin e Karyn Kusama) com mais distanciamento emocional. Então, uma transição começa. Enquanto as Mantles ousam sonhar com um tratamento melhor para as mulheres, a série ousa desafiar nossa noção de que o olhar íntimo no corpo feminino deve ser igualado ao horror corporal.

*Na verdade, como Beverley sempre lembra, gestantes não são pacientes. Elas não estão doentes. Outra palavra é necessária.

Entre esse princípio cujo visual lembra qualquer drama médico e a chegada da clínica privada das Mantles, onde há, como no filme, a ênfase no vermelho até nas roupas cirúrgicas (aqui, menos uma evocação do inferno e mais um símbolo menstrual/de natalidade), Beverley e Mantle descobrem o mundo dos super ricos habitado por Rebecca, sua financiadora vivida pela deliciosamente perversa Jennifer Ehle, cuja atuação é digna de Emmys, sua parceira Susan (Emily Meade) e outras figuras semelhantemente memoráveis (só esperem pra ver como é o personagem do grande Michael McKean). Apesar de pertencerem ao mesmo mundo, tão bem visualizado pelo design de produção de Erin Magill e Adam Scher, estes bilionários são como as drogas do filme original, um elemento de fora dessa orquestra de órgãos e fetos. Para eles (e elas), mulheres são experimentos. Se bem-sucedidos, estes darão lucro.

A Rebecca de Ehle mostra que Birch tem interesse em explorar temas semelhantes ao de Cronenberg, mas ela sempre traz uma perspectiva nova e interessante. Além de colocar mais elementos na trama — a família Mantle, colegas de trabalho, a misteriosa personagem da fenomenal Poppy Liu — Birch se propõe a adicionar à discussão, dar novos passos a partir do que o filme construiu. Ainda há, por exemplo, tons eróticos entre as gêmeas, e isso é interrompido quando uma delas se envolve com uma atriz (Britne Oldford como Genevieve, cujo nome é uma homenagem a Geneviève Bujold, que interpretou esse papel no longa-metragem). Dessa vez, porém, não é a amante que quer engravidar, mas a própria Beverley.

Novamente, há ciúmes. A ideia de que a gêmea não é, na verdade, um corpo adicional e sim uma metade faltando, implicando que algo só tem valor se for experimentado pelas duas. Como, então, lidar com a gravidez de uma delas? A série também abraça a pitada futurista, meio ficção-científica, do trabalho de Cronenberg através das experiências da calculista Elliot sobre a criação de vida fora do útero. Novamente, nisso tudo, Gêmeas se torna um gêmeo de Gêmeos. A conexão é inevitável, mas apesar das semelhanças, eles não são o mesmo.

Onde as coisas são iguais é no talento da pessoa no foco das câmeras. Como Irons no cinema, Weisz faz um trabalho que beira a perfeição. Ela cria um ritmo, uma dança, entre as duas, com significados implícitos, gatilhos para lembranças e um passado inescapável dosando cada uma de suas falas, troca de olhares e brigas. Ela se equilibra na tênue linha de dar a Beveley e Elliot identidades distinta enquanto mantém a quantidade exata de comportamentos e características idênticas para borrar o limite entre as duas.

Aliás, vale dizer, você vai se confundir. Às vezes, é difícil saber se estamos vendo Beverley ou Elliot. Isso, claro, é a intenção de Birch, e seus colaboradores na direção são precisos na hora e deixar essa ambiguidade entrar em cena. Com muita textura e composições que frequentemente são representações poéticas das ideias do texto, Durkin, Kusama, Karina Evans e Lauren Wolkstein trazem Gêmeas: Mórbida Semelhança à vida, mas não se contentam com o parto. Eles nutrem os roteiros — escritos por Birch, Ming Peiffer, Rachel De-Lahay, Miriam Battye e Susan Soon He Stanton — até a maturidade, o desenvolvimento total do esqueleto.

Por essas qualidades e tantas outras, Gêmeas: Mórbida Semelhança faz algo mais interessante do que criar um debate do que é melhor entre filme e série. A obra-prima de Cronenberg ainda terá mais significado histórico e, naturalmente, é responsável pela gênese de tantos temas presentes no seriado. Birch, Weisz e seus colaboradores, porém, fizeram algo que conversa com o longa, reflete suas ideias, discorda de seus argumentos e realça a potência dessa história. É, como a Irma Vep de Olivier Assayas, algo que simultaneamente nos lembra do filme, e faz algo novo. Gêmeas e Gêmeos, separados no nascimento, estarão sempre conectados.

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