Godzilla Minus One coloca o rei dos monstros de volta no trono
Capturando o espírito do original de Ishiro Honda, novo filme do kaiju entra em cartaz no Brasil
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Se houvesse harmonia entre todos os estúdios envolvidos, seria possível organizar uma ZillaCon devido ao lançamento simultâneo de Godzilla Minus One, da série Monarch: Legado de Monstros e do trailer do novo Godzilla e Kong. Mas se Warner Bros., Legendary, Apple tivessem feito algo parecido, serviria em grande parte para mostrar como as versões mais empolgantes do rei dos monstros seguem vindo de seu país natal, como é o caso do longa-metragem da Toho agora em cartaz no Brasil.
Dirigido por Takashi Yamazaki, Minus One, o ótimo primeiro filme japonês live-action do monstro desde o espetáculo de horror existencial Godzilla Resurgence em 2016, existe em grande contraste com a ideia heroica vista no tal Monsterverso onde o lagartão se alia a King Kong e batalha outras criaturas. Se Godzilla está aqui para nos proteger, então Gojira continua firme no propósito original concebido por Ishiro Honda há quase 70 anos: um deus-destruidor cuja presença é a manifestação física de desastres dos quais nós somos os verdadeiros culpados.
Se o filme de 1954 colocou Godzilla como uma clara alegoria para a bomba atômica, outras versões o imaginam como um resultado de nosso destrato com a natureza (o próprio Resurgence trará a tragédia de Fukushima à mente) ou como uma encarnação do próprio planeta revoltado (a trilogia de animações de Hiroyuki Seshita e Kōbun Shizuno na Netflix). O que torna Minus One tão poderoso e interessante é a abordagem mais ampla com a qual o kaiju é tratado; ele pode ser qualquer uma dessas ideias acima, e todas elas. Mas se japoneses adoram vê-lo como uma metáfora, então desta vez não há comparação melhor do que a própria morte.
Num sentido literal, este é um ser do tamanho de um arranha-céu capaz de esmagar veículos militares e cujo raio de calor deixa para trás uma nuvem de cogumelo facilmente reconhecida, especialmente por japoneses nos anos depois da Segunda Guerra Mundial, período onde Minus One acontece. No ano onde muitos reclamaram da ausência da perspectiva oriental em Oppenheimer, este filme oferece um bom olhar para o outro lado da moeda.
A morte também existe cultural e espiritualmente em Minus One. Afinal, estamos vendo um país na beira da aniquilação, ocupado por forças ocidentais e iniciando um longo processo de recuperação no qual a própria alma daquela terra está em jogo. Mas e se houver algo que merece ser deixado pra trás? Isso é levantado por Yamazaki em sua investigação dos pilotos kamikaze, já que um deles, Koichi (Ryunosuke Kamiki) sobrevive à guerra fingindo que seu avião deu defeito, e recebe uma oportunidade de recuperar sua honra na luta contra Godzilla
Ou, pelo menos, é o que ele pensa que deve fazer. O suicídio é uma parte complexa e dura da história japonesa. Dos seppuku dos samurais aos altos números de mortes pela prática no Século 21, tirar a própria vida é uma ideia com a qual o país sempre precisou lidar, e os pilotos kamikazes são um dos capítulos mais feios dessa longa realidade. Não à toa, Godzilla é apresentado primeiro como um mito, um ser que sempre existiu nas profundezas e é potencializado pelo uso de armas atômicas. Koichi acha que sua guerra só acabará quando ele se jogar, cheio de bombas, na boca do monstro, mas a "desvalorização da vida," como chama um personagem, é debatido em diversos momentos.
Godzilla é a morte reduzindo um país levado ao zero pela guerra e pelas bombas ao "menos um." Mas ele é, também, a encarnação destrutiva de uma batalha bem mais pessoal para Koichi e muitos japoneses. Através de sequências como uma perseguição marinha e a primeira chegada do kaiju à terras japonesas, Yamazaki elabora encontros onde esses relacionamentos serão testados, e homens e mulheres poderão, literalmente, olhar no olho do abismo.
Divertido, grandioso e empolgante, Minus One nunca esquece a moldura de filme de ação, desastre e guerra que sempre acompanha Godzilla — aqueles ansiosos para ver a cauda do monstro decapitando um edifício sairão do cinema satisfeitos — mas é justamente a carga emocional, em especial o drama de Koichi e sua família de órfãos, que eleva o filme acima de qualquer coisa feita neste hemisfério.
Crítica publicada originalmente em 14 de dezembro de 2023.