Godzilla e Kong: O Novo Império abraça a loucura psicodélica e, infelizmente, os humanos
Novo filme dos monstros parece ansioso para deixar os humanos de lado, mas seu roteiro insiste em atrapalhar.
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A beleza de um monstro como Godzilla está na sua flexibilidade. Meros meses depois do japonês Godzilla Minus One retomar uma pegada semelhante ao original de 1954 e lembrar como Gojira é capaz de pincelar temas profundos, o hollywoodiano Godzilla e Kong: O Novo Império bebe do fim da era Showa, quando coisas como Godzilla vs. Mechagodzilla e All Monsters Attack traziam o ar lúdico de uma criança imaginando as lutas entre seus brinquedos.
Os confrontos entre Kong e Godzilla, assim como a eventual união dos rivais para enfrentar o primata Scar King, o primeiro titã do Monsterverso da Legendary que pode ser descrito como possuindo swag, efetivam ainda mais que Godzilla vs. Kong a transmutação dessa continuidade cinematográfica. Se os primeiros filmes, Godzilla (2014) e Kong: Ilha da Caveira, procuraram ambientar os kaijus na realidade para enfatizar seu tamanho e fazê-los agentes da natureza, tomando de volta para si o controle do planeta, os mais recentes, dirigidos por Adam Wingard, diminuem os gigantes para centralizá-los na imagem, trocando o verossímil pela fantasia. Eles não fazem mais parte do nosso mundo; nós estamos no deles. Literalmente.
Situado quase inteiramente na tal Terra Oca, um reino quase não mapeado acessado apenas por portais mágicos, apesar de estar no subterrâneo do globo, O Novo Império é uma versão mais extrema de seu antecessor. Ali, Wingard parecia construir um desenho animado de altíssimo orçamento que, infelizmente, precisava dividir tempo com um live-action nada inspirado com 30 personagens, todos responsáveis por explicar algo complicado e verbalizar as intenções dos monstros.
Aqui, as lutas são mais psicodélicas, criativas e empolgantes. Uma determinada batalha nos últimos 20 minutos dispensa até com as leis da física para pintar algo como um cenário de Super Smash Bros., onde múltiplos embates podem acontecer simultaneamente, dando espaço para as mais imaginativas combinações de golpes, socos, lasers e raios. Infelizmente, o filme não é só isso.
Claro, não seria sustentável manter os monstros lutando por 120 minutos, mas Godzilla e Kong: O Novo Império é o melhor argumento contra a presença contínua de personagens com menos de 2 metros de altura no holofote. Por um lado, Wingard bebe de Planeta dos Macacos e Avatar para humanizar as expressões faciais (especialmente do gorila, sem dúvidas o protagonista) e encenar sequências inteiras sem nenhuma palavra, mas inteiramente compreensíveis. Longe de oferecerem dilemas complexos, esses momentos prezam pela simplicidade inexistente nos diálogos cheio de exposição do tal núcleo humano, pior do que nunca aqui. Tal feito é impressionante, dado que Godzilla II: Rei dos Monstros decidiu ter um drama de divórcio com Eleven, de Stranger Things.
Millie Bobby Brown não retornou para este filme, assim como muitos outros atores. Rebecca Hall e Brian Tyree Henry estão de volta, atuando como quem está com pressa para terminar suas cenas. É difícil culpá-los. O estúdio claramente acredita que precisamos de cientistas e pesquisadores na função narradores, como se fosse um desafio entender por que o gorila socou o dinossauro. Outra decisão com cara de exigência dos produtores foi a de elevar o papel da jovem Jia (Kaylee Hottle, fofa mas muito limitada) para uma criança da profecia, completa com habilidades telepáticas.
A exceção à regra é Dan Stevens. Como uma espécie de veterinário dos monstros, ele o único membro do elenco claramente se divertindo no processo, e ao seu lado, Henry finalmente ganha um parceiro cômico digno de seus talentos, eventualmente se soltando em cena. Quem dera fosse possível falar o mesmo de Wingard. Chega a ficar palpável o quão pouco interessado ele está em filmar um diálogo numa sala. Suas composições chapadas não refletem em nada a inventividade da segunda hora do filme, quando os monstros enfim começam a tretar.
Que o lado humano desses filmes é ruim, não é nenhuma novidade. É inexplicável, contudo, investir tanto tempo neles. Godzilla e Kong passa uma hora com esses personagens, e levando em conta a pobreza visual e de texto nessa aparentemente interminável preparação de terreno, esses coadjuvantes deixam de ser uma distração infeliz para ser um agente ativo de irritação, trabalhando contra o próprio filme. Se é preciso dividir tantos minutos com eles, a execução não pode ser tão ruim. Não é preciso tomar o rumo sério de Minus One, o personagem de Stevens já aponta para uma saída.
Todo espectador vai dizer: "quem liga se os humanos são mal desenvolvidos. Eu estou aqui pelos monstros." Não me entenda errado; eu também. Por isso, é tão cansativo quando retornamos para Hall só para ouvir algo sobre um campo gravitacional ou onda de energia. Ela parece saber disso. Seu olhar é de quem está desesperada para sair dali.
Eventualmente, porém, chegamos ao que funciona: Godzilla e Kong interagindo com outras criaturas na Terra Oca, seja pela violência ou não. Nesses espetáculos neon de rosa, azul e verde, Wingard pode finalmente se soltar, pintando os mais absurdos cenários até chegar na conclusão recheada de destruição situada, claro, no Rio de Janeiro. Visualmente, Godzilla vs. Kong sofreu por ainda ter um pézinho na estética mais pedestre do Monsterverso, enquanto Godzilla e Kong se desprende inteiramente disso, conquistando mais liberdade na hora de colocar em cena essa sucessão de boss fights desenhadas para a telona.
É simples, visceral e eficaz. Resta saber se um dia, esse universo enfim deixará de lado os humanos, ou pelo menos a incorreta suposição de que eles precisam se envolver em narrativas complexas, povoadas de computadores e explicações, ou pior ainda: serem algum tipo de fulcro emocional. Godzilla e Kong: O Novo Império declara os titãs como verdadeiros donos da Terra, mas a audiência parece reconhecer isso mais do que o próprio filme.