Guerra Civil testa sua audiência com espetáculo visceral e propositalmente raso
Produção da A24 com Kirsten Dunst e Wagner Moura dispensa as explicações e parte para a intensidade de horrores
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“Toda vez que eu sobrevivi a uma zona de guerra e mandei minhas fotos, eu pensava que estava enviando uma mensagem pra casa: ‘não façam isso.’” Com essa frase, a fotojornalista Lee (Kirsten Dunst) coloca em foco a abordagem do diretor e roteirista Alex Garland no novo filme da A24, o visceral e impactante Guerra Civil, que imagina um futuro próximo onde os Estados Unidos passam por outro confronto armado — desta vez contra eles mesmos. Aqui, esse alerta foi ignorado.
Há algumas frases assim. “Nosso papel não é questionar,” ela diz em outro momento — este, de ensino, com a veterana de pele grossa tentando transmitir sua experiência e ceticismo para a novata e empolgada Jessie (Cailee Spaeny) — “nós tiramos as fotos para que outros questionem.” Garland compartilha desse entendimento. Neste exercício visceral e propositalmente raso de ficção especulativa, ele se dedica a construir um teste de Rorschach que joga para sua audiência não só a responsabilidade de interpretar a resposta, como também de fazer a pergunta.
Se diálogos como estes revelam as intenções artísticas de Guerra Civil, há uma falta perceptível de exposição e até mesmo argumentos na obra. Sabemos que o conflito começou depois que o atual presidente (Nick Offerman), responsável por dissolver o FBI e atacar americanos com drones, se recusou a deixar o cargo depois do fim de seu segundo mandato. Sabemos que as tropas concentradas em Washington D.C. agora enfrentam três facções: maoístas no noroeste, a tal Aliança da Flórida no sudeste, e seu principal oponente: as Forças Ocidentais da Califórnia e Texas. Não sabemos, porém, como o estado mais à esquerda e o mais à direita dos EUA podem estar aliados, e Garland tampouco se dá o trabalho de alinhar secessionistas com o partido Republicano ou Democrata.
Diferenças políticas, questões sociais e ideologias são deixados de lado em nome do impacto imediato de assistir aos tipos de atos de guerra frequentemente dramatizados por filmes americanos situados no Oriente Médio acontecendo, agora, em solo estadunidense. Dirigindo de forma surpreendentemente comedida, Garland não pisa (até o último minuto) no sensacionalismo da situação, preferindo sempre se distanciar e apresentar os tiroteios e explosões quase como cinema veritae. Esse quê documental dá a todo o filme um grau agudo de realismo. O diretor conta com a bagagem de suas audiências — em particular as norte-americanas, testemunhas de visões como a invasão do Capitólio americano em 6 de janeiro de 2021 ou das ações de supremacistas brancos em Charlottesville — para preencher esses quadros de significado, não com seu texto ou personagens.
Esses personagens, além de Lee e Jessie, incluem Joel (Wagner Moura, divertido como um perseguidor de emoções que se sente vivo em meio ao caos) e o experiente Sammy (Stephen McKinley Henderson, o tipo de ator que melhora qualquer cena). Como Lee explicou para a garota, uma fã despreparada emocionalmente para as realidades à sua frente, eles apenas registram, não questionam. O quarteto funciona essencialmente como veículos, tanto para receber e processar as sequências genuinamente assustadoras de combate quanto para nos levar, literalmente, de canto a canto de um país em ruínas.
Guerra Civil acontece, primariamente, enquanto os acompanhamos viajando na estrada de Nova York até Washington, onde eles devem conduzir e fotografar a primeira entrevista do presidente em 14 meses. Desesperado com os adversários se aproximando, o político deu ao grupo a permissão de entrar na cidade, onde jornalistas são tipicamente tratados como inimigos e recebidos com força letal.
O texto cru de Garland oferece alguns vislumbres de personalidade, que grandes atores como Dunst e Moura quase transformam em personagens carnudos, mas o fato é que o filme não está interessado em contar suas histórias, e tudo bem. Na verdade, os poucos momentos onde os dilemas partem para pessoal e íntimo figuram entre os piores do filme, que funciona melhor como uma coleção de episódios brutais. Guerra Civil acerta ao se propor ao espetáculo de horrores, não à narrativa emocional.
Um homem-bomba carregando a bandeira vermelha, branca e azul. Donos de um posto de gasolina posando para fotos ao lado das vítimas de sua tortura. Tanques de guerra abrindo o caminho até a Casa Branca. Guerra Civil é um filme de um truque só. Aqui está um atirador de elite colocando o alvo em sua mira, mas o cenário ao seu redor não é o deserto iraquiano, e sim uma JCPenney ou outra franquia de varejo americana. O contraste e choque inerentes a essas composições são tudo. É suficiente?
Por um lado, isso gera reações agudas no espectador. Mais de uma vez me peguei apertando o braço da poltrona no cinema, onde as filmagens em IMAX e design de som estrondoso nos transportam para o meio da disputa, encenada por Garland com quadro após quadro de pura intensidade. Em contrapartida, é difícil encontrar razões para permanecer nesse estado de abalo por muito tempo, já que essas imagens não são acompanhadas de nenhum sentimento além do inerente às circunstâncias.
Eis o teste de Rorschach. Guerra Civil apresenta os terrores para onde toda a sociedade ocidental parece estar caminhando e nos dá amplo espaço para preencher as lacunas. Quem é o culpado? Por que chegamos nesse ponto? Jornalistas deviam mesmo “só registrar”? A questão, claro, é que isso abre margem para duvidarmos do teste em si. Essa proposta funciona? Há, de fato, peso no que estamos vendo? Neste caso, não ter nada a dizer é um defeito ou um recurso? Guerra Civil quer provocar? E se sim, como?
A tristeza com a qual Garland banha toda a viagem sugere respostas, assim como encontros mais explícitos como com o memorável e temível personagem de Jesse Plemons. Guerra Civil não quer entregar um diagnóstico, e sim colocar em tela a brutalidade da doença. Sutilezas dão lugar a um rolo compressor de bad vibes. Contudo, não será estranho ver pessoas denegrindo o filme como isentão ou covarde; uma tentativa de ouvir (e criticar) “os dois lados” que, no processo, não tem nada a dizer. É até adequado que tal jogada venha na produção mais cara da história da A24. Guerra Civil é, para o bem e para o mal, o filme mais A24 possível.