John Wick 4 usa Lawrence da Arábia para completar transformação da franquia num épico de deuses e assassinos
A intenção do diretor era fazer um épico como o lendário clássico de David Lean. Com a ajuda de Keanu Reeves, ele chegou lá.
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Esses filmes tinham um vislumbre de realismo. O primeiro John Wick, afinal, nos apresenta a um homem aparentemente normal que deixou o mundo dos assassinos em troca de um cotidiano comum com sua esposa. Ali, observamos por brechas a mitologia construída por Derek Kolstad e depois expandida; uma versão moderna e sem magia de um universo fantástico; metrópoles equivalentes ao Monte Olympus ou Asgard onde uma Alta Cúpula de deuses rege espartanos e valquírias os encaminhando para cometer homicídios.
Há uma distância entre esses deuses e os civis. Se no longa-metragem original, o Wick de Keanu Reeves havia deixado seu lugar nos céus em troca de caminhar com o povo, segue-se que enxergávamos o mundo ainda através dos olhos do homem banal. Seus feitos naquele filme, e até certo ponto na continuação, são vislumbres do extraordinário. Conforme Wick protagoniza momentos inacreditáveis, ele é transportado de volta à realidade de onde saiu. Simultaneamente, descobrimos novos incrementos deste mundo.
Talvez por isso John Wick 2 seja rotineiramente apontado como o melhor da franquia. Ali, o diretor Chad Stahelski, Reeves e seus colaboradores mantém seus exageros ainda pautados no realismo; as lutas e tiroteios impressionam mais porque nosso ponto de referência ainda é, largamente, nossa realidade. Tudo que Wick faz parece vir de outro mundo, e nossa sensação de admiração é potencializada porque sentimos que não fazemos parte dele. Os headshots, facadas e explosões abrem nossos olhos para um universo além do nosso, um onde alguém é capaz de realizar tarefas impossíveis e matar inimigos com lápis; onde há contratos, promissórias, hotéis secretos e armaduras em forma de ternos.
Com o Capítulo 3, porém, a série começou a subir a escada dessa mitologia e entrar num território cada vez mais fantasioso. O mundo do qual tínhamos apenas pistas se faz plenamente visível. Não era mais apenas Wick fazendo mágica, havia outros soldados super-humanos. Os espartanos e valquírias entraram em ação como seus adversários e, como consequência desse aumento nos riscos, nos distanciamos do ponto de partida. Nosso mundo ficou no retrovisor. Agora, com o Capítulo 4, não há mais sinal dos mortais. Só deuses lutando.
John Wick: Capítulo 4 abraça o estilo e excentricidade usados para colorir essa mitologia moderna nos três primeiros filmes — figurinos, sets e design de produção — elevados à enésima potência. O máximo impacto. JW4 segue a identidade estabelecida anteriormente, mas a apresenta com mais intensidade. As pancadas causam mais dor, a beleza é mais transcendente, o sangue mais carmesim.
Assim como no passado, há uma luta sangrenta durante uma balada. Dessa vez, porém, as pessoas presentes em meio aos socos e balas não gritam, não param de dançar, não correm, por que elas, assim como nós, estão acostumadas com as faíscas dessas batalhas. Stahelski e o diretor de fotografia Dan Laustsen sabem que a imagem será melhor com a silhueta de corpos em movimento no fundo da cena. Agora, eles não precisam mais se preocupar com o realismo. Essas pessoas não fogem. Elas pertencem. Elas já estão no mundo desses titãs.
Essa abordagem maximalista, repleta de linhas fortes e cores marcantes, encontra seus ápices nas pelo menos cinco sequências de ação que, em outros filmes, seriam concebidas como um pièce de résistance, incluindo uma — basicamente um live-action de Hotline Miami — que é genuinamente arrebatadora. Essa cena coloca uma arma nova nas mãos de John Wick: uma espingarda modificada que representa plenamente a busca de Stahelski de aliar a execução precisa de esquemas complexos com composições visuais pomposas. É uma tempestade de luz e fogo.
John Wick não é o único dotado de capacidades especiais. Outros combatentes são, semelhantemente, equipados com os raios de Zeus, ou o tridente de Poseidon. O Rastreador vivido por Shamier Anderson se revela como uma sombra furtiva, capaz de encontrar e acompanhar qualquer pessoa, como se tivesse um faro tão bom quanto o de seu cachorro, seu principal aliado em lutas. Então, há Caine. Vivido pela lenda de artes marciais Donnie Yen, esse assassino cego luta de forma tão espetacular que sua existência seria inconcebível no primeiro capítulo da saga, quando ainda éramos ignorantes para as capacidades desses emissários da morte. É como se seu personagem em Rogue One: Uma História Star Wars fosse transportado para cá, habilidades da Força inclusas.
Assim, forma-se o cenário de um épico de fantasia onde varinhas são substituídas por facas e granadas tomam o lugar de feitiços. Stahelski afirmou ter pensado em JW4 como um "épico de David Lean." Sua estratégia para chegar lá começa com uma referência ao momento mais famoso da obra-prima de Lean, Lawrence da Arábia. Stahelski recria o lendário corte do tenente Lawrence de Peter O’Toole apagando um fósforo para o nascer do sol no deserto, onde ele será enviado pelos ingleses para auxiliar a revolta do príncipe Faisal da Arábia Saudita contra os turcos.
Lawrence recebe a tarefa através dos lábios risonhos do chefe do bureau árabe do Reino Unido, Mr. Dryden. Interpretado por Claude Rains, o burocrata acha curiosa a afirmação de seu subordinado de que a missão no deserto será divertida. “Lawrence, só dois tipos de criaturas se divertem no deserto: beduínos e deuses, e você não é nenhum dos dois. Confie em mim, para homens ordinários, é como uma fornalha ardente."
Sorridente, Lawrence insiste: “Vai ser divertido.” Lean, então, enquadra O’Toole como um gigante em tela. Seu rosto grande o suficiente para que um sopro seja capaz de apagar tal fornalha. Na cena, o fogo é representado por um fósforo cuja chama, quando extinguida, nos transporta para a terra prometida onde acompanhamos o inglês tentando de toda forma provar que não é um homem ordinário. Primeiro ele se veste como um beduíno. Depois, ele age como um deus.
A jornada de Lawrence é uma das mais belas, trágicas e importantes da história do cinema, e o deserto apresentado por Lean durante três horas faz jus à descrição de Dryden. Em John Wick 4, não passamos três horas no deserto. Wick também sopra um fósforo num close, e também vamos para as areias. Nossa estadia lá é breve. Figurativamente, porém, o deserto se estende por todo o filme.
Vemos Keanu Reeves indo a Paris, Berlim e Tóquio. Todos esses ambientes se provam tão imperdoáveis como a Arábia de Lawrence. Lugares onde só deuses se divertem. A comparação não seria válida se Stahelksi, Reeves e esse talentosíssimo time de dublês não operassem no mais alto nível. Sua precisão, velocidade, criatividade e grandiosidade precisam nos convencer da existência de uma natureza divina. Ainda que não haja, literalmente, nada sobrenatural, um toque sagrado justifica nossa certeza. Esse é o entretenimento das potestades.
Talvez por isso a última sequência de John Wick 4, uma escalada propositalmente ridícula, abrace o humor. Ali, Stahelski e Reeves parecem ter perdido qualquer interesse nas regras de humanos e adquirido a liberdade de brincar. Se estamos, de uma vez por todas, no mundo dos deuses, por que não se divertir?