Assassinos da Lua das Flores de Martin Scorsese é um épico melancólico abastecido por DiCaprio e De Niro
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Assassinos da Lua das Flores de Martin Scorsese é um épico melancólico abastecido por DiCaprio e De Niro

Dramatização dos assassinatos dos Osage em 1920 é uma das obras mais sinceras e reflexivas do lendário diretor

Guilherme Jacobs
29 de setembro de 2023 - 10 min leitura
Notícias

Como muitos diretores, Martin Scorsese às vezes se inclui em seus filmes. Seja de forma autodepreciativa (Taxi Driver) ou cômica (O Rei da Comédia), o realizador que uma vez disse ser algo entre mafiosos e padres vez por outra usa essas participações para comentar sobre si mesmo. Elas aparentam ser vestígios de suas intenções artísticas. Nenhuma dessas pontinhas, porém, carregam a carga emocional do momento no qual Scorsese vai para frente da câmera em Assassinos da Lua das Flores, sua aguardadíssima nova produção.

Martin Scorsese não é um personagem instrumental na história. A cena, porém, deixa explícito o que permeia as 3 horas e 26 minutos deste épico melancólico, engraçado e grandioso. Ela é uma espécie de legenda para um longa-metragem feito com sinceridade e sentimentalismo palpáveis. O texto de Assassinos da Lua das Flores poderia, facilmente, ser interpretado por Scorsese como um suspense de crime na linha de tantos outros de seus clássicos, mas a idade avançada, experiência de vida e perspectiva do mais celebrado autor da Nova Hollywood parecem ter lhe transformado.

O Scorsese de Assassinos da Lua das Flores, cuja estreia gerou as maiores filas do Festival de Cannes deste ano, lembra particularmente o Scorsese do fim de O Irlandês, quando aquele filme ganha o ar reflexivo de um idoso avaliando os feitos de sua vida. Há, porém, uma relação menos direta entre artista e obra. A narrativa sobre o massacre de índios Osage em Oklahoma nos anos 1920 para que homens brancos tomassem suas terras (e seu petróleo) simplesmente o conquistou*. Ele quer contá-la. Aproveitando cada centavo dos US$ 200 milhões da Apple que o financiaram, ele lança um filme centrado nas consequências e riscos pessoais dessa trama, jamais se apoiando no sarcasmo ou ironia para comunicar os temas sublinhados em sua rápida aparição.

Ah, e eu mencionei que ele conta com a ajuda de seus amigos Leonardo DiCaprio e Robert De Niro?

*A versão original do filme tinha DiCaprio como o agente do FBI que resolve o caso, e este era o foco. Após conversas com os Osages, Scorsese mudou a ênfase para os índios e trocou o papel do astro.

A reunião dos dois maiores musos de Scorsese vem na adaptação do excelente livro homônimo de David Grann, um registro jornalístico de como os homens brancos da região de Fairfax em Oklahoma arquitetaram e executaram assassinatos com veneno, tiros e explosões para, através de manobras burocráticas facilitadas por um governo falho, tomarem para si os direitos das terras Osage e do ouro preto fluindo em seu solo. Entre os índios afetados por esses criminosos hediondos está Mollie (Lily Gladstone), e entre os possíveis culpados estão seu marido Ernest (DiCaprio) e tio do rapaz , o magnata de personalidade pacata William K. Hale (De Niro). Não surpreenderá ninguém saber que os ricos de Assassinos da Lua das Flores querem se tornar mais ricos, e muito menos que estão dispostos a explorar pessoas inocentes para cumprir esse objetivo.

A exploração é literal e metafórica. Enquanto poços de petróleo são cavados, o sangue seus donos é derramado para criar um líquido rubro-negro. Relacionamentos são forjados com o intuito de traçar uma linha direta entre figuras como Hale, o oportunista, e Mollie, a oportunidade. Nesse caso, Ernest pode servir de ponte. O poderoso drama de Assassinos da Lua das Flores surge, em grande parte, da tensão de descobrir de qual lado Ernest estará quando os créditos rolarem.

Interpretado sem reserva alguma por DiCaprio, cujas expressões faciais parecem enfatizar as linhas do envelhecimento e cujas falas nunca soaram tão (propositalmente) inseguras quanto aqui, Ernest professa abertamente amar o dinheiro e amar a Mollie, ao ponto de que quando avisada por suas irmãs do interesse monetário do homem, a mulher diz já estar ciente disso. Entre gagueiras e uma beleza atrapalhada (da qual Scorsese tira grandes risadas), DiCaprio constrói Ernest de tal forma que, junto com Mollie, temos ciência de sua paixão pelo dólar, mas também acreditamos em sua dedicação à esposa.

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Deste relacionamento partem as fontes de vida de Assassinos da Lua das Flores. Trazido à telona pela fotografia de Rodrigo Prieto e sua habilidade de transformar luz e sombras em textura, o filme, assim como o livro, não esconde suas reviravoltas atrás de surpresas telegrafadas, preferindo espremer das dinâmicas humanas o combustível para engajar sua audiência. Diferente da obra de Grann, e de como os mais entusiasmados fãs devem esperar, Scorsese pauta seu novo estudo de ganância e história americana num casamento. É tentador equivaler Ernest e Mollie aos Estados Unidos e os Osage, mas a comparação é menos interessante do que o vai e vem sentimental encenado por DiCaprio e Gladstone. Ela, mais quieta e estoica, guarda por trás de seus olhos uma mistura de dor e senso de justiça. Com um gesto tão simples quanto levantar seu queixo, Gladstone deixa a quantidade ideal desses elementos sair de sua personagem, uma das melhores personagens femininas da filmografia de Scorsese.

Interferindo no casal está De Niro. Um demônio bem-vestido e convidativo, Hale seduz Ernest e a comunidade local com um convite para jantar, uma ajuda na hora do aperto e um ombro para chorar. Ele faz questão de deixar sua admiração pelos Osage clara e, em grande parte pelo charme de De Niro — amplamente presente em sua melhor atuação em 25 anos — como um golpista tão convencido de sua própria balela que, talvez, ele esteja até falando a verdade.

A figura de Hale é contraposta com a da mãe de Mollie. Enquanto o ricaço está sempre falando e sorrindo, Lizzie Q (Tantoo Cardinal) mulher de poucas palavras e ainda menos sorrisos. De certa forma, os dois oferecem um simbolismo poético para o país e para os nativos de onde essa pátria tirou os ossos utilizados na construção dos fundamentos. Um usa promessas e garantias para esconder suas intenções. A outra, depois de tanto falar e ser ignorada, foi calada.

Como Scorsese tem mostrado, a história norte-americana é sangrenta e cheia de injustiças. O passado da nação, inundado de cobiça e crimes, parece ser o assunto central de O Lobo de Wall Street, O Irlandês e, agora, Assassinos da Lua das Flores. Talvez por isso, o elemento mais frustrante de Assassinos da Lua das Flores seja a forma como ele lida com o surgimento do FBI, um acontecimento paralelo e interligado aos homicídios do longa. Quando o agente Tom White (um infelizmente subutilizado Jesse Plemons) entra em cena e menciona J. Edgar Hoover, que usou essa crise para lançar a agência e acumular poder, o momento chega sem o mesmo embasamento emocional da construção de Ernest e Mollie, e com exceção da sequência supramencionada onde o próprio Scorsese participa, pouco subdesenvolvido.

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Por um lado, é compreensível que, já com 3 horas e 26 minutos de duração, Scorsese tenha decidido não se estender entrando na apresentação de algo tão complexo quanto as políticas da criação do FBI e como Hoover transformou desastres como esse em propaganda. Por outro, a inclusão de White, especialmente diante do quão Plemons é mal aproveitado, acaba servindo quase só como distração.

Digo quase porque há um claro contraste entre como Hoover e Scorsese recriaram os assassinatos dos Osage. Voltando para o momento onde Scorsese se coloca dentro do filme quase quebrando a quarta parede, vemos como enquanto o chefe do FBI usou (claro) mais homens brancos para capitalizar em cima dessas mortes, Martin Scorsese, em seus 80 anos, quer prestar homenagens e respeito a esse povo. Um dos grandes especialistas em exploração no cinema norte-americano, Scorsese faz de seu novo filme uma denúncia dessa prática.

Essa crítica foi escrita em 20 de maio de 2023 após a exibição de Assassinos da Lua das Flores no Festival de Cannes, em maio. O filme estreia nos cinemas brasileiros em 19 de outubro deste ano e depois vai para o Apple TV+.

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