Napoleão: Como o Cinema Conquistou o Conquistador

Napoleão: Como o Cinema Conquistou o Conquistador

Há quase 100 anos, o cinema adapta a vida do imperador francês para as telonas.

Guilherme Jacobs
24 de novembro de 2023 - 11 min leitura
Notícias

Napoleão Bonaparte é, também, o título de uma das mais de duas dúzias (conte você mesmo) de versões do filme Napoleão (1927)*, do lendário diretor francês Abel Gance. Gance passou décadas trabalhando em diversos cortes de seu épico, um dos mais ambiciosos filmes mudos de todos os tempos, e em 1935, lançou uma das únicas edições com vozes, trazendo o elenco de volta para dublar a si mesmos. Com 2 horas e 6 minutos, ela tinha “apenas” três horas a menos que a versão mais completa da obra, restaurada pelo montador e historiador Kevin Brownlow em 2016, com 5 horas e 32 minutos.

*Dica: o Napoleão de 1927 está disponível de graça no Internet Archive.

O que torna o filme de 1935 tão interessante é seu começo, que oferece uma moldura para a narrativa; abrimos em Paris, durante o exílio de Bonaparte, enquanto cidadãos locais passam a noite numa “fábrica de história” onde os feitos do imperador são recontados através de músicas, imagens e lembranças. Há debates sobre os detalhes, mas juntos, o povo pinta o quadro da ascensão de Napoleão. É como se Gance estivesse comentando, em seu próprio trabalho, o seu constante retorno ao longa-metragem, sempre adicionando, tirando, reestruturando e voltando à mesma fonte.

Talvez o diretor não soubesse, mas o cinema passaria o século seguinte ao lançamento de seu filme fazendo o mesmo. Inúmeros filmes e séries dramatizam a vida e as batalhas de Napoleão Bonaparte. Mais recentemente, Ridley Scott lançou seu Napoleão, com Joaquin Phoenix no papel principal, e confirmou que há uma outra versão do filme, com duas horas a mais, preparada para streaming. Scott provavelmente não fará outros cortes além desse, mas como Gance, sentiu necessidade de reconfigurar seu longa-metragem.

Crítica: Napoleão de Ridley Scott compartilha ambição e problemas com seu protagonista (e diretor)

Tem sido assim. Filmes inteiros foram feitos sobre episódios isolados da vida de Napoleão. Em 1970, Sergei Bondarchuk fez Waterloo, dramatizando a derrota final de Bonaparte. O filme televisivo Eagle in a Cage, de 1972, foca no soldado responsável por policiar Napoleão no fim de sua vida, durante o exílio em St. Helena, em 1815. Isso para não falar de obras sobre a Revolução Francesa, como A Marselha de Jean Renoir e Maria Antonieta de Sofia Coppola, ou cujas histórias usam as guerras napoleônicas como pano de fundo; é o caso com o espetacular O Manuscrito de Saragoça, filme de Wojciech Has adorado por Martin Scorsese, e Os Duelistas, o primeiro longa do próprio Ridley Scott.

Tudo, porém, começou com Gance.

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“Não é estranho que o homem que fez um dos mais fortes filmes anti-guerra — Eu Acuso!, lançado em 1919 e refeito em som em 1938) — foi tão dedicado às façanhas de um dos generais mais belicosos da história?,” nos disse Brownlow, que dedicou a vida a completar e restaurar o original de Gance, e passou anos trabalhando ao lado do próprio diretor. Para muitos críticos do filme, um espetáculo visual mas raso na investigação da pessoa de Napoleão, esse é seu defeito primário. Gance fez algo que parece apenas pró-Bonaparte, “mas é preciso lembrar que o plano original era uma série de seis filmes, e a atitude em relação a Bonaparte mudava um pouco a cada um,” lembrou o historiador, que virou uma espécie de sucessor do cineasta.

“Gance mexeu em seu trabalho. Não fazemos o mesmo?,” Brownlow disse. “Acho que Gance produziu com Bonaparte e a Revolução, a reformulação de seu filme na década de 1960, um filme semelhante (no tratamento) ao que qualquer diretor de documentário poderia ter feito com o material. Pelo menos quando assumi o papel, como você diz, fiz o meu melhor para manter vivo o espírito de sua versão silenciosa.”

Gance acabou fazendo apenas um filme, que termina quando Napoleão assume o comando do exército francês na Itália, a primeira de suas campanhas militares. De certa forma, o cinema, através de Scott e tantos outros, vem preenchendo os vazios deixados desde 1927.

Para Brownlow, porém, nenhum se compara. “Vi vários filmes sobre Napoleão e não encontrei um exemplo tão imaginativo, tão cinematográfico, tão preciso, tão bonito, tão divertido ou tão emocional quanto o de Gance,” ele afirma. “Você já viu Napoleão (1955), de Sacha Guitry? Exatamente o oposto.”

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Não faltam filmes. A questão é, por que? O historiador Everett Rummage, cujo excelente podcast The Age of Napoleon é provavelmente a melhor forma, em inglês, de conhecer a história real do general, oferece sua visão: “Desde que era vivo, Napoleão tem sido irresistível para os artistas. Sua biografia é tão improvável e emocionante que parece ficção. Ele é um ícone cultural há mais de duzentos anos, então os cineastas têm uma quantidade enorme de material para se inspirar.”

“Ele é também uma figura romântica: o último ‘grande homem da história’ antes da invenção da fotografia e dos meios de comunicação de massa, e o último grande guerreiro antes do advento da guerra industrializada,” ele nos disse.

Seu podcast, que segundo o autor é mais popular no Brasil do que em qualquer outro país, tenta abordar toda faceta possível da história de Napoleão, e ele é o primeiro a admitir que mesmo com mais de 100 episódios, ele ainda não conseguiu.

“Como podcaster, tenho tempo ilimitado para explorar todas essas contradições e mostrar os diferentes lados de seu personagem” diz Rummage. “Um cineasta tem apenas algumas horas para trabalhar. Eles têm que pegar esse personagem absolutamente enorme e multifacetado e reduzi-lo o suficiente para caber na tela de um filme. É uma tarefa totalmente impossível.”

Por que? “Napoleão era uma figura complicada,” ele explicou. “Havia muitos lados em seu personagem, alguns dos quais aparentemente conflitantes entre si. Ele era capaz de atos de tirania quase indescritíveis, mas também tinha uma tendência liberal e progressista. Ele era um egoísta implacavelmente ambicioso, mas também um servidor público dedicado que detestava a corrupção pessoal. Ele era frio e calculista, mas também capaz de surpreendentes atos de compaixão. Ele foi um grande conquistador que chorou ao ver homens mortos e feridos no campo de batalha.”

Rummage tem seus filmes favoritos. Ele respeita a comédia As Novas Roupas do Imperador, de 2001, apesar dos vários erros históricos, e considera Waterloo incrível, com exceção da atuação de Rod Steiger no papel principal. Os Duelistas, de Scott, e claro, o filme de Gance, recebem sua aprovação, assim como a curta aparição de Napoleão em Bill & Ted - Uma Aventura Fantástica, "que é um filme muito divertido, mas eu não vou garantir sua autenticidade histórica."

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Apesar de concordar com Rummage sobre a impossibilidade de incluir todos os fatos da vida de Napoleão num só filme (Gance, com 5h30, não conseguiu), preciso discordar de sua afirmação de que não há maneira de encaixá-lo no cinema. Afinal de contas, muitas vezes o cinema consegue expressar as diversas facetas, contradições e complexidades de figuras históricas sem passar por cada ano de sua vida. Isso só não parece ter acontecido com Napoleão.

Talvez aconteça em breve. Com apoio da Netflix, a "versão Apollo" do Napoleão de Gance, que tem mais de sete horas, está sendo restaurada. Brownlow, dessa vez, não está envolvido. Georges Mourrier está cuidando da nova versão. Brownlow confia em seu conhecimento, mas teme o uso de uma nova trilha sonora ou a perda do ritmo. Sua última restauração, mesmo com enormes 332 minutos, revela um filme revolucionário, com criatividade ímpar no movimento da câmera, composições instantaneamente inesquecíveis e, apesar de não questionar como devia o impulso sanguíneo de seu protagonista, uma grande capacidade de comunicar seu poder narrativo através de imagens.

O filme de Gance é, de certa forma, a grande referência até hoje, mas tanto a quantidade de versões deste quanto a proposta inicial de fazer mais cinco episódios revela a opinião do próprio autor sobre o tamanho da empreitada. Ele pode não ter feito isso sozinho, mas talvez, se juntarmos Napoleão (1927), Waterloo, Os Duelistas, Napoleão (2023) e tantos outros filmes, temos uma chance. Napoleão pode não ter sido encapsulado por um só filme, ainda, mas como um todo, a sétima arte fez algo mais interessante, e produziu diversas grandes obras que, juntas, conquistaram o conquistador.

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