O Menino e a Garça Explicado: O que é o adeus de Hayao Miyazaki?

O Menino e a Garça Explicado: O que é o adeus de Hayao Miyazaki?

Em mais um filme que pode ser seu último, lenda do Studio Ghibli avalia sua carreira e vida

Guilherme Jacobs
7 de outubro de 2024 - 8 min leitura
Notícias

"O vento se ergue! Devemos tentar viver!" é a declaração final de Vidas ao Vento, a obra-prima que, até então, era o último filme de Hayao Miyazaki. O titã da animação e maior nome do lendário Studio Ghibli, claro, já se aposentou algumas vezes, e não há como ter certeza que O Menino e a Garça será, de fato, o fechamento de sua carreira (segundo um produtor, ele já tem outro projeto em mente). Se for o caso, essa carta de despedida é uma linda, estranha e poética resposta ao seu antecessor. Depois de nos mandar viver, Miyazaki agora pergunta como.

Ranking de Hayao Miyazaki: Todos os filmes do diretor de Viagem de Chihiro e Meu Amigo Totoro

O título deste filme em japonês, afinal, é o mesmo do livro escrito por Genzaburo Yoshino em 1937 ("Como Você Vive?") e presentado de forma póstuma a Mahito, o titular Menino, por sua mãe, morta no bombardeio de Tóquio durante a Segunda Guerra Mundial. Agora, ele e seu pai, que casou com a irmã da falecida esposa, se mudaram para o interior, e quando o garoto descobre o presente, temos um dos exemplos mais claros da mensagem deixada por Miyazaki nessa dura, poderosa e doce avaliação feita por uma lenda em seus anos finais de trabalho e vida.

O melhor exemplo, porém, vem mais pra frente, através de outro personagem que nos ajuda a entender o significado final de O Menino e a Garça. Primeiro, precisamos falar sobre como Mahito encontra ele.

LISTA: 5 referências de O Menino e a Garça a outros filmes do Studio Ghibli

Apesar de frustrado com a situação de sua família, Mahito não hesita quando precisa se aventurar na torre sombria vizinha à mansão de sua tia (ou "nova mãe," nas palavras dela), Natsuko, quando ela desaparece, levada pela Garça para dentro dessa construção velha e misteriosa. Lá, Mahito é levado até um mundo fantástico. Se a primeira hora de O Menino e a Garça é Meu Amigo Totoro, uma paciente e relativamente pacífica passagem por uma paisagem natural com toques de magia, a segunda é A Viagem de Chihiro, quando pulamos de cabeça num universo bizarramente criativo, onde compartilhamos do misto de fascínio e confusão sentido pelo protagonista.

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Como o parágrafo acima sugere, O Menino e a Garça pode facilmente ser lido como um "greatest hits" de Miyazaki e do Studio Ghibli. Há criaturas que trazem à mente os kodamas e susuwatari, crianças se arrastando para dentro de ambientes sobrenaturais e comentários perspicazes sobre o impacto, majoritariamente negativo, da humanidade na fauna e flora. Mas esse filme não é apenas uma coleção de referências. O todo é muito maior que uma simples junção de suas partes. Aliás, chamar essas inclusões de "referências" é um desserviço ao seu propósito; manter em nossas mentes as imagens e personagens mais marcantes de Miyazaki para, então, questioná-las.

Esse passeio pelo passado ganha mais peso quando O Menino e a Garça aprofunda seus significados e entendemos que Mahito não é o único reflexo de seu criador nessa fábula. Miyazaki nunca escondeu suas influências, e tampouco nega o impacto de sua vida real nas suas obras. A relação conturbada com o filho, o tempo sacrificado em nome do trabalho e a dificuldade em lidar com a falta de controle sobre a resposta do público e do mercado quando a arte deixa seu estúdio; tudo isso pautou seus filmes, e não é diferente aqui.

Como o garoto, Hayao Miyazaki está visivelmente lidando com suas memórias do bombardeio (ele tinha 4 anos) e a subsequente perda de sua mãe, vítima de tuberculose. A frustração com as circunstâncias ao seu redor, o ressentimento com os adultos — em particular o pai — e o desejo de fugir para outro lugar movem ambos Mahito e Miyazaki, mas o cineasta também existe de outras formas, em especial no Tio-avô, uma misteriosa figura que entrou na torre há anos, e lá criou o mundo onde o garoto agora se aventura.

(Aqui, preciso entrar em detalhes do final de O Menino e a Garça. Cuidado com spoilers depois da imagem abaixo. Se quiser um texto sem spoiles, leia aqui).

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Se Mahito reflete o princípio de Miyazaki, o Tio-avô representa seu fim. O Menino e a Garça foi descrito pelo diretor como algo que ele queria deixar para seu neto. Um último recado antes de partir. Quando o Tio-avô entra em cena e interage com seu descendente, pedindo que este seja seu sucessor no comando deste reino. "Faça algo melhor," ele diz. Algo com paz. Agora é sua vez.

Mas Mahito nega o convite e volta para casa, onde há guerra, morte e famílias imperfeitas. Se Miyazaki quer usar O Menino e a Garça para falar com uma nova geração, então sua declaração não é um convite a seguir seus passos, mas sim a analisá-los. As construções do Tio-avô são destruídas quando o tempo dele termina, e sem Mahito, aquela terra vira ruínas. É como se o diretor estivesse, de fato, considerando o valor de passar décadas e décadas de sua existência se dedicando à criação de fantasias. De certa forma, quando ele morrer, elas morrem para ele. Em paralelo, o único jeito de escapar delas parece ser morrendo. É um pensamento mórbido e relevante para alguém que já disse mais de uma vez que estava se afastando do cinema.

Mas não é só negatividade. Talvez a principal características desta rica filmografia profundamente ecológica seja como a natureza é pintada nela. As ondas do mar de Ponyo, o céu por onde Porco Rosso e Kiki voam, o vento renovador de O Castelo no Céu, a relva por onde o castelo de Howl se move, as árvores imponentes de Princesa Monoke. Miyazaki pode ter sido um crítico ferrenho de governos fascistas e humanos sem consideração pelo meio ambiente, mas ele também foi um verdadeiro apaixonado pela Terra, e foi de lá que ele tirou todas as ideias ecoando nesses títulos.

Amamos suas criações, e não faltam tentativas de reproduzi-las. Dos livros ensinando receitas de pratos vistos nos filmes do Ghibli à viagens planejadas com base nos locais que os inspiram, fãs de Hayao Miyazaki muitas vezes parecem querer, acima de tudo, habitar em seus desenhos. Mas o verde da grama e o azul do firmamento só são assim porque existe uma versão real deles, amada e querida por ele. No que podem ser seus últimos minutos como artista, Hayao Miyazaki nos diz que não há fantasia capaz de substituir a realidade. Como devemos viver? Não a substituindo. Criando a partir dela. Testemunhando sua beleza. Vivendo nela.

O Menino e a Garça está disponível no catálogo da Netflix.

Texto publicado originalmente em 22 de fevereiro de 2024

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