Algumas frases e ideias perdem força conforme são repetidas. Se você já assistiu a qualquer reality de culinária, ou documentário sobre chefs, provavelmente já ouviu dezenas de pessoas proclamando como a comida é uma experiência comunal, relatando seu deleite ao ver o sorriso de quem prova um prato, e reforçando, também, o estresse e intensidade da experiência. Acredite, há verdade nisso tudo. A cozinha é uma faca de dois gumes. Num restaurante, tudo isso se intensifica, e no The Original Beef of Chicagoland, onde se passa a história de O Urso (The Bear), mais ainda.

Finalmente disponível no Brasil pelo Star+, com oito episódios de pura energia, caos e simpatia, O Urso é o evento televisivo do ano. A série criada por Christopher Storer acompanha Carmy (Jeremy Allen White), um dia chef do melhor restaurante do planeta, retornando para casa para assumir o cargo de seu irmão Mikey depois de sua morte trágica e inesperada. Lá, ele encontra seu “primo” boca-suja Richie (Ebon Moss-Bachrach), o confeiteiro dedicado Marcus (Lionel Boyce), a veterana de cara fechada Tina (Liza Colón-Zayas) e a prodígio Sydney (Ayo Edebiri), cuja presença nessa equipe é quase tão gritante quanto a do próprio chefe. Carmy, contudo, também encontra trauma, ansiedade e fantasmas.

Retornos são como caldos. Com emoções no lugar dos ingredientes e um longo período de assimilação, sua complexidade não deve ser subestimada. Tempere por cima com perdas na família, problemas para dormir e o desejo de transformar um restaurante bagunçado num ambiente saudável e bem-avaliado (sem falar rentável), e você terá um prato cheio. As metáforas deste texto não são acidentais. O que torna O Urso tão excepcional é como sua primeira excelente temporada se desdobra como uma verdadeira receita, mudando seu ritmo, seus elementos e sua textura conforme o chef transita de panela para panela. Às vezes, os episódios voam com pressa, como alguém cortando cebolas em alta velocidade. Às vezes, as coisas precisam passar mais tempo no forno. E, às vezes, tudo pega fogo. Não se esqueça de colocar luvas.

Carmy pode ter passado pelas melhores cozinhas do planeta, mas seu retorno a Chicago oferece um desafio tão grandioso quanto suportar os abusos verbais de seus superiores nestes ambientes de luxo. Como ele pode melhorar o cardápio? Como ensinar novas técnicas para esses chefs (por respeito, o protagonista chama todos de chef, não de cozinheiros)? Como elevar o nível da comida sem perder a alma do lugar? Como lidar com a perda do irmão? Com o ódio de Richie? Com suas noites de insônias? Se parece muito, é porque é.

Em seus olhos inacreditavelmente azuis, Jeremy Allen White, por algum milagre, parece transmitir tudo isso, o tempo todo. Em seu rosto está alguém cuja mente nunca para de trabalhar. Ela pode até desacelerar, se deixar dialogar sobre os feitos culinários mais impressionantes do mundo, relembrar histórias de infância engraçadas, mas ela nunca dorme. Em sua atuação simultaneamente frenética e precisa, ele captura a essência da série.

Como seu ator, Storer e a diretora Joanna Calo, junto com a talentosa sala de roteiristas encabeçada por Karen Joseph Adcoc e Sofya Levitsky-Weitz, fazem essa mesma dança. A montagem, a direção e os diálogos — sejam sobre os mais raros ingredientes ou sobre os mais íntimos dilemas humanos — são como canções mudando de nota e tom constantemente, mas nunca perdendo a harmonia. Conforme outros personagens florescem, e com eles seus atores, O Urso forma um mosaico narrativo encabeçado por Carmy, mas incompleto sem seus coadjuvantes. Richie é insuportável, e ao mesmo tempo nosso melhor amigo. Sydney deve ser estudada como verdadeiro exemplo de uma personagem feminina forte. Michael a conexão constante com a paixão pela gastronomia. Todos são construídos como pessoas reais num ambiente real. Chicago provê cheiro e som à série, e eles são as cores preenchendo a cidade e sua cultura.

O equilíbrio é mantido com controle absoluto. É notável, por exemplo, como os primeiros episódios são mais desenfreados, cheios de gritaria e mais brigas. Então, Carmy começa a acertar as coisas. A cozinha passa a estar, cada vez mais, em sintonia, e seus chefs mais bem equipados para lidar com problemas. Então, claro, um obstáculo surge. Um pote derramado, uma privada entupida, uma relação testada. É difícil identificar onde O Urso deixa de ser uma série sobre um restaurante e quando começa a ser sobre pessoas. Mas, afinal, não é sempre assim com as melhores séries? Mad Men é sobre uma agência publicitária? The Wire é sobre a polícia de Baltimore?

Tal é a magia de cozinhar. Algo pode ser salgado ou doce, ácido ou suave, crocante ou cremoso, e os melhores normalmente combinam essas características para gerar uma experiência única. Algo cuja entrada em nossa língua faz a mente, coração e corpo reagirem. Isso sem falar sobre o estômago. O Urso é assim. É impossível assisti-la sem reagir. Impossível não sonhar com suas comidas, não torcer por seus personagens. Os melhores chefs criam pratos cuja qualidade gastronômica só pode ser rivalizada pelo seu significado pessoal, e O Urso reflete isso ao nos dar uma refeição completa.